sábado, 30 de março de 2013

50 Tons de Agonia




Sorte teve quem como eu, pode, na infância e início da adolescência, saber o que era o Clube do Livro[1]. Assim, pude conviver, desde a mais tenra idade, com Anna Karenina, Jean Valjean, Isaac Asimov, Otelo e Desdêmona entre outros tantos que me fizeram debruçar sobre uma literatura interessante e interessada.

O mercado editorial, neste interregno, mudou bastante, junto com a abertura política que se desenhou em nosso país, a partir dos anos 1980. Levantamos as mãos, agradecendo à NÃO realização de censura e, com isso pudemos nos achegar a outros tantos textos escondidos pelo receio da Ditadura.

Da mesma forma, a globalização e o uso da internet, mais modernamente, nos aproximou de tantos outros escritos.

Tais mudanças, todavia, não implicam, necessariamente, em uma aproximação de livros e congêneres sempre com qualidade literária, mas também com expressões individuais que, através de sites, blogs e redes sociais, nos trazem a trajetória e a história de quem, de verdade, tem coragem de declarar o que pensa.

De todo modo, no último ano, me deparei com comentários e mais comentários sobre uma tal trilogia acinzentada. Era comentada nas mesas de almoço, nos happy hours, durante os finais de semana, pelo telefone, nas redes sociais. Algo que me chamou a atenção era o fato de que todos estes comentários e os suspiros provocados pela trilogia vinham de mulheres. E essas mulheres eram de todas as idades, de todas as classes sócio-culturais. Explanavam sobre a trilogia como uma nova bíblia: algo que eu não podia entender com clareza.

Sucumbi a um best seller para saber exatamente do que se tratava, mas não consegui nutrir a mesma paixão que via nas mulheres que me rodeavam, que bamboleavam em halos de luz e paixão por um personagem absolutamente impossível no mundo real. O livro “água com açúcar” descreve o encontro de uma mocinha inocente com um jovem rico, bonito, inteligente e de sucesso, que tem preferências sexuais não tão alinhadas com o chamado de politicamente correto. Não precisa de mais nada para ser um livro clichê.

E então, quanto tempo faz que deixamos de queimar soutiens?

Quanto tempo faz que não precisamos mais lutar para poder votar?

Quanto tempo faz que estamos brigando para ter o mesmo espaço e reconhecimento no trabalho, sem precisar ter uma jornada de 10 horas a mais que o normal?

Quanto tempo faz que tentamos nos equilibrar nos saltos altos enquanto respondemos aos e-mails de clientes, cuidamos da casa e das crianças e checamos o orçamento doméstico enquanto o celular toca?

E depois de tanta estrada, de tanta luta, o que tenho visto é que o sonho de consumo não é um novo par de sapatos, mas um Sr. Grey que ofereça mandos e desmandos, que controle, que seja o provedor com encantadores olhos acinzentados e ideias de prazer.

É triste pensar que 85%[2] das mulheres apaixonadas pelo personagem principal da trilogia são casadas e mães, o que me faz pensar que muitas delas estão em um relacionamento de péssimo a ruim. Uma amiga querida me disse que tentou fazer com que o marido lesse a trilogia, sem sucesso. Ora, o caminho para melhorar o relacionamento não é um best seller, mas sim, o diálogo. Aliás, este é o melhor (ou o que se aproveita) da trilogia, ainda que as partes ali envolvidas se expressem através de um contrato. Ainda que as cláusulas contratuais declarem, apenas, as necessidades e o modo de satisfazê-las de uma única parte. É através de um instrumento jurídico fajuto (e de adesão) que um diz o que pretende e o outro esclarece se aceita. E olha que nem estamos tratando da antijuridicidade do tema, se o case fosse verdadeiro e acontecesse no Brasil. Cláusulas leoninas[3]?... 

Ora, o contrato todo teria que ser nulo do ponto de vista jurídico, já que o prazer que proclama pertence, em princípio, somente ao Sr. Grey, ou eu estaria equivocada? Mas eu não pretendo entrar na discussão dos prazeres que a submissão pode proporcionar ao submisso. Não contesto o grau de confiança que é exposto em relações desse tipo, mas me parece que a trilogia faz com que a confiança que ocorre dentro de uma relação humana deve ter prazo de validade. E, convenhamos, a questão vai muito além do que Esopo[4] poderia imaginar...

Num bate-papo com advogadas que leram o livro também me deparei com uma discussão interessante que trazia à baila a questão constitucional da dignidade humana. Ouvi, aturdida, algumas opiniões acaloradas de quem ainda estava sob o feitiço cinzento e que negociaria com muita facilidade o que reconhece como sua própria dignidade. Rizzatto Nunes[5] afirma que a dignidade humana não pode e não deve ser precificada, posto que não se trata de um simples valor. Apesar de esse ser um tema que o legislador constituinte buscou sedimentar em nosso acervo jurídico, a dignidade da pessoa humana[6] pode parecer um conceito muito aberto se não analisado no caso in concreto. É dizer, então, que existem várias dignidades e, ainda, que estas dignidades são diferentes tomando como norte as concepções que a pessoa humana faz de si mesma e não somente vetores jurídicos que formam o conceito do tema. Neste sentido teríamos que avaliar caso a caso se as pessoas envolvidas na relação citada no livro entendem suas condutas como dignas ou indignas de um ser humano.

De qualquer forma, aqui estamos tratando de uma situação hipotética, onde bem se aplicaria, se fosse o caso de uma análise jurídica sobre um fato, a Jurisprudência dos Valores[7]. E se quiséssemos que esta fogueira tivesse altas chamas, a discussão poderia se enveredar sobre o direito que temos sobre o próprio corpo ou ainda sobre a autonomia de vontade.

E a pergunta que fica é: uma mulher de verdade se submeteria a quaisquer cláusulas? A todas as vontades de um indivíduo por mais voluptuosas ou repugnantes que fossem? 

Devo esclarecer que sou absolutamente partidária do direito de escolha, mas parece-me que chegamos a um tempo em que a mulher está cansada demais para perceber-se. Cansada em demasia para olhar no espelho e ver-se inteira refletida. Com tantas tarefas, compromissos e, sendo bombardeada por critérios absurdos de beleza, esqueceu-se de que não só pode, como deve enxergar a magia de suas curvas da meia idade. Está tão distraída com o mundo que empurram para ela que não entende que os desenhos que o tempo rabisca em seu rosto nada mais é que contar sua história de vida de uma maneira diferente. Olhar para o espelho com aprovação é a mesma coisa que receber um elogio. E sorrir para si mesma, pela manhã, faz com que o dia todo seja muito melhor.

E isso, refletido nos relacionamentos é extremamente positivo. Não precisamos de um Sr. Grey para pendurar um quadro ou arrumar uma fechadura. Para isso existem profissionais habilitados. Também não se pode pretender que o homem com quem se convive se acinzente para que todas as noites sejam absolutamente calientes. Todos temos limitações. Mas me diga de verdade: você se lembra porque se apaixonou? Porque ficou ao lado da pessoa com quem está? O hábito de esquecer as benesses que uniram pessoas é a segunda maior causa de divórcios e separações. A maior delas é esquecer-se de si mesmo. Abandonar-se. Não importa se este abandono é do ponto de vista físico ou emocional. Não existem novos centros de moralidade humana, só uma aplicação deficiente do poder que cada um julga possuir. Sexo bom é aquele que contém duas almas inteiras. Não adianta enterrar sonhos na areia. Os desejos que não são expressos em palavras ou gestos se perdem no vento.

Porque viver em eterna agonia, se é possível mudar a história?

Não é um livro cinza que vai mudar sua trajetória. O diálogo ainda é a melhor maneira de enfrentar um relacionamento. Os seus desejos não são pecados, são inibições com as quais você pode aprender a conviver. E dividi-los é uma decisão que só cabe a você. Todas as direções são possíveis para quem quer caminhar, para quem vê um destino. O céu será sempre das cores que você pintar.

Eu sei que existem coisas difíceis de dizer, de expressar, mas a solidão e o abandono não são um estado de espírito, são uma escolha.
Do passado devemos lembrar apenas dos dias de sol.

Confesso que, às vezes, eu sinto vertigem dos meus saltos altos. Mas eu não acredito em finais. Eu só acredito em novos começos.



Publicado em fevereiro de 2013, na Revista da OAB de Santo André (ano 03, no. 11)



[1] Círculo do Livro foi uma editora brasileira estabelecida em março de 1973 através de um acordo firmado entre o Grupo Abril e a editora alemã Bertelsmann. Vendia livros por um "sistema de clube", onde a pessoa era indicada por algum sócio e, a partir disso, recebia uma revista quinzenal com dezenas de títulos a serem escolhidos.
[2] http://www.bizrevolution.com.br/bizrevolution/2012/10/porque-as-mulheres-amam-christian-grey.html, em 13/02/13.
[3] Segundo Nelson Nery Junior, cláusulas abusivas "são aquelas notoriamente desfavoráveis à parte mais fraca na relação contratual de consumo. São sinônimas de cláusulas abusivas as expressões cláusulas opressivas, onerosas, vexatórias ou, ainda, excessivas." In Nery Junior, Nelson. Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997
[4] A expressão cláusula leonina tem sua origem numa fábula de Esopo: uma vaca, uma cabra e uma ovelha haviam feito um acordo com um leão e caçaram um cervo. Partindo-o em quatro partes, e querendo cada um levar a sua, disse o leão: a primeira parte é minha, pois é meu direito como leão; a segunda me pertence porque sou mais forte que vós; a terceira também levo porque trabalhei mais que todos; e quem tocar a quarta me terá como inimigo, de modo que tomou todo o cervo para si. 
[5] Rizzato Nunes, O princípio da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência, p. 20.
[6] Constituição Federal, art. 1º, III.
[7] Jurisprudência dos valores é a interpretação da lei segundo os valores por ela tutelados. A vigência do direito positivo não é negada, ao contrário, é confirmada, mas suas palavras ganham vida, ganham luz, não são mais simples palavras, são valores. 

quarta-feira, 27 de março de 2013

O melhor do jogo



Pensa bem. Eu posso me esquecer do que vim fazer aqui e colocar tudo a perder...você me conhece. Já sabe do sangue na veia... mas se quer correr o risco: tudo bem. Arranco com os dentes esta sua gravata e pronto. Anda logo com isso. Sabe da minha impaciência, mas fica fazendo onda. Eu sei que você está louco para mergulhar em nossa insanidade, mas finjo que não entendo bem o que seus olhos dizem. É nosso jogo preferido, não?





Mandrake






Eu não sei guardar segredos. Os mistérios rasgam a minha boca e explodem para que os outros vejam, ouçam e sintam os corpos escondidos. Ungidos os corpos que estavam velados pelo segredo que não é mais. Antes, as palavras estavam caladas, doces... feito veludo. Mas perdi o controle em algum momento e elas foram crescendo, fazendo cócegas em minha garganta, num misto de prece e de feitiço. Ameaça de revelar minha alma. E, então, eu segurava, eu apertava, espremia. No silêncio, pensava que as palavras tinham morrido. Uma calma provisória me encharcava e eu sorria. Você vinha e caminhava pelo meu quarto grande e cheio de armadilhas. Eu tinha as palavras e você não sabia. Eu tinha as palavras. O mistério. O segredo das coisas. Você atravessava a porta e vinha em minha direção sem saber do perigo. Um passo depois de outro. Você olhava para mim e sorria. Seus passos pelo quarto eram como pegadas invisíveis. Mas eu tenho super-poderes e, mesmo no escuro, podia ver todos os desejos que te acompanhavam como um cortejo de sorte. E você sabe que a sorte pode ser boa ou ruim. Meu homem estava chegando e eu sabia. Eu sempre soube tudo. Meu homem estava caminhando em minha direção e eu via vindo com ele o menino que ele também era. As palavras saculejaram um pouco mais dentro de mim. Ressuscitaram. Criaram vida de novo. Eu me ajeitei melhor na cama, apoiada sobre os cotovelos, te esperando. Eu sempre soube como despertar sua malandragem. E você vinha vindo. Devagar. Eu olhava você, que agora tinha o corpo nu iluminado pela meia luz que vinha do Tiffany lilás que ficava na minha mesinha de cabeceira. Você, agora, era um raio de luz violácea que caminhava através das minhas armadilhas, em minha direção, sem pensar nos riscos que corria. A atmosfera era temperada por uma música suave que escorria das caixas de som e penetrava os poros do meu quarto. A voz mansa e mole da cantora remendava a música que, às vezes se acidentava nos feriados. Mas hoje era dia de trabalhar. E você vinha vindo. Agora poderia ser para sempre. Para mim as coisas sempre são definitivas. E, definitivamente, eu tinha vantagens sobre você, que não conhecia os segredos todos. Você estava cada vez mais perto. Da minha pose de Cleopatra eu podia sentir seu hálito quente que, em poucos segundos estaria em minha nuca. Pousou sobre meus lençóis de cetim. Assim, de perto, eu podia ver as minhas pegadas sobre as costas dele. Ele me olhava e eu sorria para ele, incentivando-o a chegar cada vez mais perto do perigo. Agora ele sabia dos riscos. Mas parecia não se importar. E eu sorria um pouco mais, apertando os olhos, incitando, disfarçando a ameaça que se calcificava diante dele. Ele não se importava. Eu sabia. Eu também não me importava, pois conhecia o que vinha. Ele vinha se arrastando sobre meus lençóis macios, pois eu sou o último dia de sol dele. Agora ele está ao alcance dos meus pés. Encosta de leve no meu tornozelo e faz promessas de subir. Eu tenho o segredo e as palavras vão ficando maduras. Agora ele está agarrado às minhas coxas. Alpinista de mim é ele. Eu sou uma montanha de perigos e ele vem. Ele vem com aquela boca viajante. Me derruba e me acode. Me morde e me salva do lobo mau que eu deixo ele ser. Existem coisas que são difíceis de dizer. Mas eu digo sim. Eu digo sim. Eu vou perder o controle se ele continuar com a língua envolta no meu lóbulo direito. Às vezes, eu deixo que ele pense que sabe como me enlouquecer. E, nestas horas, eu deixo que ele se engane, enquanto eu pinto o céu de uma cor que gosto mais. As mãos dele nas minhas costas. Ele me aperta por fora e eu gosto. As palavras vão crescendo por dentro e eu gosto. Eu sou o espremido entre ele e as palavras que, mais cedo ou mais tarde, vão explodir. Ele tem um lugar especial no meu quintal de memórias. Se ele me perguntasse agora, eu diria que jamais me esqueceria dele. Eu prometeria qualquer coisa que ele quisesse, desde que ele não saísse de cima de mim. Desde que ele não parasse. Desde que ele não secasse o suor que agora vem descendo pelas têmporas de trabalhador dele. Eu iria para onde ele me mandasse, se ele não parasse. Se ele não parasse de mordiscar meu pescoço. Porque você sabe que todas as direções são possíveis. Ainda mais agora que você olha assim, de cima, para mim, e eu tenho, aqui dentro todos os segredos que se mexem através das palavras que mudam de forma. O abajur lilás. As paredes do meu quarto. O cetim que escorrega. Os seus poros que vão despejando. O céu lilás do meu quarto. Os meus cigarros que esperam na mesinha de cabeceira. Os meus pés de bailarina. Sim. Eu prometo. Eu juro qualquer coisa. Eu sou capaz de jurar até as palavras que eu não tenho. Eu juro pela luz dos seus olhos. Dono. É meu. Não tenho outro. Vem. Os meus lábios pintados de vermelho. O meu grito abafado pela tua boca. E agora mais. De outro jeito. Pelo outro lado. Esqueci o segredo. Não lembro mais. Nunca adormeça sua boca viajante no meu ventre. Eu sou seu passaporte. Eu sou a fruta mordida. Vem. Mais para cima. Sinta mais o meu gosto. Esqueci o segredo. Já não sei mais. Que horas são?

Carne



Às vezes eu gostaria de saber a distância entre meus lábios e a parede. Aquela que sempre olho de frente. Meu corpo quente de saudade. Minha pele ávida por um toque mais ousado, mais desobediente... E nem todo corpo é carne. E nem toda carne é alma. Porque um fogo lento e permanente me incendeia por dentro. Meus pecados todos. Incendiados para dar mais brasa àquilo que me queima a lucidez pouco a pouco. Segredos de confessionário. Sacerdotes horrorizados com meus mais profundos desejos. E o que vale está dentro dos limites da parede. Quatro delas. Lugar onde a decência não existe e, justamente por isso, aconchega. Planos de uma saúde comprometida depois de tanto alongamento. E o olho no olho. Suor gelado que escorre pelas tuas têmporas. Água de beber entre paredes. Se pode tudo. E mais um pouco. E um pouco mais... Boca de carne. Carne de pescoço. Às vezes. Só às vezes. Mas pescoço é bom também, se está inclinado no ângulo certo. Aquela parte bem próxima do cabelo. Aquela parte quase nuca. Que quase nunca é explorada. E desce capotando às ancas que estão obedientes entre os dez dedos das mãos de unhas perfeitas. Lambendo tudo. Agora mais para a direita, por favor. Ritmo. Ritmo é tudo numa hora dessas que não existe no relógio. Quatro paredes. Quatro pernas. De quatro. Numerologia do prazer infinito. Agora mais fundo. E a dureza de uma realidade sempre esperada. Mais uma vez. Os olhos quase saltando das órbitas. Um pouco mais. A carne do corpo tremendo. Quantas pessoas vivem em cada corpo? E o corpo é sempre de carne? Olhos nos olhos. Saliva que transborda da boca. E a parede atrás. O limite. Todas as quatro. Aqui dentro se pode tudo. Lá fora... bem... lá fora nem interessa mais. Olhos nos olhos e a saliva que se mistura com o suor que agora brota, ainda mais intenso, e corre as vielas até chegar na ponta dos cabelos. Água salgada que pinga no corpo salgado. Carne salgada. A distância entre minha boca e a parede diminui. Quase desaparece. Só restou meu grito abafado no teu peito. Hoje que já é amanhã vai nascer um dia lindo.




Ele diz:




A pena que abandonaram segue escrevendo, apesar de mim. E apesar de mim as coisas seguem acontecendo e tomando rumos estrategicamente calculados pelo acaso. Como aquele encontro que não houve porque o destino roubou minha coragem quando eu descia as escadarias longas dos meus medos. Oco. O barulho é oco quando tocam em mim. Estou de todo pronta para que a música me invada e faça de mim sua marionete. Homem grande guiado pelos fios do destino que, mesmo não existindo de fato, impera. O imperativo. O passado perfeito do imperativo do verbo fome. Fome dela, que se desenha na minha frente e quase já não está, se eu não aperto os olhos mais um pouco. Eu oco e ela plena na sua inteireza. Os cabelos dela ao vento que eu sopro com minha boca quente e cheia de saliva. Minha boca enorme para morder as ancas dela. Devagar. Depois um pouco mais afoito. O barulho muda. Não há mais eco. Estou me enchendo dela. E quero ficar cheio até transbordar. Uma inundação de pernas dela. Com os sapatos de saltos altos e finos entornando pela borda da minha boca que tem fome. Mais fome. Cada vez mais fome dela. O eco sumiu. Estou ouvindo a música que veio com o gosto dela. Estou cheio dela e de notas musicais, solfejos, claves de fá e de sol. Arpejos. Arfantes estão os peitos dela. Subindo e descendo numa velocidade estonteante. Eu estou por cima agora. Babando nela, que invade tudo: meu corpo, minha mente, os objetos da sala de jantar... o lugar onde mato minha fome. De frente para o espelho do móvel de canto, que deixa a bunda dela mais redonda. Eu perco o controle. Apesar de mim, o relógio segue num tic-tac infinito. O transe. O ruído da pena que se esfrega no papel, maliciosamente, para que eu possa contar esta estória. Ela se esfrega em mim também. Esfrega pele com pele rasgando minha solidão. A boca dela está voando pela casa. Bocas vermelhas por todos os lados. Uma tempestade de bocas. Nas paredes. Na geladeira branca que agora serve de apoio e guarda o copo de água gelada que eu vou precisar quando eu ficar oco de novo. Mas ela se balança e me tira a atenção de meu plano de futuro. Ela balança a forquilha que é a imagem que eu tenho das ancas e das pernas dela agora. Ela sorri para mim com a boca vermelha que voa, e se vira de costas. Apóia as mãos na geladeira branca e espera. Fome. Eu tenho fome e agora estou na cozinha. Ela ri alto. Ela ri muito. Não sei porque está feliz. E eu caminho em sua direção, cego. Eu estou com os olhos bem abertos mas não consigo ver nada além das ancas dela que balançam na tempestade de bocas vermelhas que voam pela casa toda. Ela cala em mim o que eu poderia gritar. Ou escrever, não sei. Ela é minha interjeição. E eu caminho em direção a ela pelos corredores que se alongam na minha memória de menino. Ela se abaixa um pouco mais e coloca a mão direita na parte de trás da coxa direita e me olha, sorrindo de lado. E eu caminho direto, sem ver direito o caminho. Me aproximo, num ofegar de galope no deserto. Ela tem um canto secreto onde esconde um não-sei-quê que eu quero. E então, eu vasculho cada canto dela. Cada detalhe dela. Eu entro em cada canto escuro dela e procuro. Agora um pouco mais. E quando ela percebe que eu estou assim, sem governo, escapa de mim de novo, para encontrar as bocas vermelhas em outro cômodo. E eu a sigo sem ver nada. Meus olhos giram nas órbitas. Rotação e translação de olhos. Os meus. A cada passo estou mais perto. Agora é ela quem voa pela casa toda. Me esvazio de todas as minhas incumbências e caço esta mulher pela casa, como quando corria atrás de borboletas. Somente um segundo é o bastante para perceber que ela não me pertence mais. Subo, de novo, as escadarias dos meus medos e me embrulho nos meus papéis de rascunho.


O outro dia




A coragem havia lhe passado a perna. Sem entender bem o que fazia, ele a convidou para jantar. Seria alguma coisa muito tranqüila – ele repetia para si mesmo, mentalmente – enquanto colocava o fone de volta no gancho e dava uma espiadela no calendário de mesa, contando os dias que faltavam para o encontro. E, de agora, até o jantar ele tinha 5 dias, 10 horas e segundos demais para saber o que ia falar para ela. Eram muitos anos de história e três de um silêncio que rompeu o peito e roeu as entranhas do homem respeitável que ele acreditava ser. Os dias iam enquanto ele fazia não pensar nos riscos que corria e analisava no espelho as rugas que chegavam na espreita de cada tic-tac. O trabalho lhe servia de distração. Ele parecia produzir cada vez mais naquele hiato de relógio. Às vezes, a secretária o pegava sorrindo e olhando para o nada. Um comentário ou outro durante a vídeo-conferência: ele parecia menos cansado, mas acessível. O tom de voz parecia ter mudado também. As pessoas comentavam, mas ninguém sabia o que ia dentro dele. Agora só faltavam algumas horas. Quando o dia amanhecesse ele seguiria cego para o endereço que estava manuscrito na agenda, sob o nome Mr. Gun. Porque ela era uma arma que sempre aponta. Ou talvez porque ela seja mesmo explosiva. Ou ainda porque ele sempre se encontrava no limiar entre a lucidez e a loucura quando ela está por perto. Bem... perto ela sempre esteve. Ele olhava para os lados e a via em todos os lugares. Mesmo durante aqueles anos de silêncio, se ele fechasse os olhos – uma piscadinha que fosse – a voz dela inundava tudo. Uma enchente de lembranças do que poderia ter sido, se ele tivesse corrido atrás dela quando ela passou pelo batente da porta e o deixou na escuridão. Mas a escuridão acaba sempre sendo previsível. Você acende uma fogueira aqui. Instala uma lâmpada ali e pronto. A vida na escuridão é previsível, e, justamente por isso, é mais segura. Se clareia somente o que se quer ver. E quem pode se acostumar com pouco, chama isso de felicidade. Mesmo que essa felicidade não traga sequer um traço de vermelho. Ele passou a mão pela testa quando lembrou da maneira como ela lhe beijava a boca. As mãos também estavam úmidas. Ele sorriu, olhou para o rádio-relógio na beira da cama e recontou as horas. Dezenove horas e caindo. Os números verdes derretendo. Tic-tac eletrônico. Gosto metálico na boca. Ansiedade controlada. Ele vigiando os números das horas ao invés de contar carneiros. Onde estava aquela calma que ele costumava sentir em todos os dias em que ela não estava por perto? Talvez ela esperasse que ele fosse menos gentil. Talvez. Cerrou os dentes quando viu os números virarem o primeiro minuto do outro dia. Os lençóis lhe trancavam os pensamentos. Agora o encontro se aproximava e ele já não sabia mais se tinha feito a coisa certa. Talvez tivesse se aproximando demais do perigo. E a cada segundo que passava, sua vida ia virando um pouco mais de pernas para o ar. Ela tinha esse poder. Transformar tudo. Arrastar. Um tsunami. Desde sempre ela era assim. Passava e tingia tudo de um vermelho escarlate que ninguém podia conter. Ela passava e alguém contava os sobreviventes. E depois era só comemorar. Só quem chegasse tão perto quanto ele chegou é que podia comemorar. Assim, olhando de lado para os números verdes do relógio ele parecia desconfiar que algo estava conspirando contra ele. Ainda eram uma e meia da manhã e faltavam muitas horas para o sol dar as caras em sua janela. Faltavam algumas horas para ele se preparar de vez para o encontro. Para ele caminhar no meio do céu que se encheria de pontinhos vermelhos luminosos porque ela estaria por perto. De verdade. Quatro horas da manhã e ele estava com os olhos secos de tão abertos. Arreganhados. Outdoor. Os números do relógio dançavam a sua frente, debochando. Ele precisaria de alguma proteção contra aquela mulher que ele, novamente, convidava para entrar em sua vida, destruindo tudo? Talvez fosse melhor não ir. Ele já havia feito isso antes. Marcara e simplesmente não aparecera. Ele tinha certeza que ela ria do medo dele. Não ir é mais seguro que ir. Ser um rato medroso é mais fácil que correr o risco de ter que olhar nos olhos castanhos dela e ver o paraíso refletido. Não ir é navegar por mares calmos. Conhecidos. Aborrecidos. É estar longe de tudo o que sempre buscou na vida. É estar longe da risada mole que ela dá, enquanto ele faz um comentário engraçado. Essa coisa de ter o mesmo senso de humor é perigosa. Quando duas pessoas não precisam dizer nada para rir... isso é muito perigoso, porque todo o resto parece não fazer sentido. E ainda tem o sorriso dela. Que brilha. E as palavras que ela fala. As letras saem da boca dela e vão tomando forma. Se juntando, até que viram uma imagem que se sobrepõe entre eles e aproxima. Ele a trataria bem se pudesse. Agora o verde dos números o confundia. Acendeu o abajur para poder ler as horas. Pôs os óculos. Quase seis. E ele não dormiu. Ou achava que não tivesse dormido. O corpo lhe doía um pouco. Talvez pela posição tesa, de lado, na cama, fixando os números do relógio. Em alguns minutos ia soar a música da rádio que ele gostava de ouvir. Ele se levantaria, tomaria seu banho, o café da manhã, a roupa no closet, as chaves do carro, a maleta, o elevador, o caminho até a empresa, o sorriso gélido da secretária. Os papéis... Mas o calendário sobre a mesa, acima de qualquer dúvida lancinante, lhe indica que o dia é este mesmo. Não é alucinação. Consulta o relógio de pulso e reconta as horas que, nesta altura, passa a ser a informação mais importante do dia. Ainda lhe restavam algumas horas para ele escolher por um esconderijo. Como havia feito das outras vezes em que ficara debaixo da mesa ao invés de correr ao encontro dela. Todavia, hoje parecia diferente. Ele sentia algo diferente. Uma coragem que desconhecia. E ainda tinha o jeito que ela apóia o queixo nas mãos, com um sorriso meio de lado e olhando dentro dos olhos dele. Ela mergulhava nele pulando dentro dos olhos dele. Perscrutando tudo. Descobrindo todos os segredos. Remexendo suas entranhas e as arrancando para o lado de fora, segurando-as na mão direta que se alça para o céu vermelho escarlate do planeta em que ela vive. No almoço com os clientes ele não conseguiu fazer nada a não ser mudar a comida de lugar no prato. Ele estava ali, naquele restaurante, mas também voava pelas ruas da cidade. Quase um super-homem. E, enquanto isso, o mundo seguia seu curso. Mais trabalho na volta para a empresa. A secretária veio se despedir, o que o fez supor que já eram mais de seis da tarde. Olhou o relógio de pulso: tinha menos de uma hora para enfrentar o trânsito, chegar em casa, tomar um banho e estar no restaurante. Ele chegou antes. Havia reservado uma mesa perto da janela de vidros grandes que dava para o pátio onde os manobristas manobravam. Viu quando ela desceu de um carro preto. Viu a boca vermelha dela. As pernas longas que se pronunciavam com os sapatos de saltos muito finos e que eram um prenúncio do céu de sorte que se descortinava. Ela sorriu para o manobrista. Levou o cigarro à boca vermelha antes de apagá-lo. Ajeitou o cabelo. E aquilo era uma visão para ele. Ela olhou para a porta do restaurante. Ele escondido atrás da janela de vidro. Ela deu o primeiro passo com as pernas longas e a distância que os separava começou a diminuir. O coração dele aos pulos. Aos saltos. Ornamentais. Antes de cair naquela piscina de emoções que era ela, que agora caminhava em direção ao maitre, derrubando as paredes por onde passava, fazendo desabrochar os botões, petardos de São João, a terceira guerra mundial. Ela caminhava e todo o resto era passado. Agora ele já podia ouvir a música dos saltos dela. Allegro ma non troppo. Ela sempre allegro. Ele tentando o non troppo. Na cabeça dele uma canção se insinuava. Ele ouvia e ninguém mais podia ouvir. Ela olhava na direção dele. Match: encontrou os olhos castanhos dela. Super bonder: jamais conseguiria descolar os olhos dela. Nem se o mundo acabasse ele conseguiria descolar os olhos dela. Porque ela era o seu passado e também era o seu futuro. Ela era um mundo todo de incertezas. De sangue correndo nas veias. De prédios que se derretem. De abdução. Sim, ele estava sendo abduzido. Agora ele entendia. Abdução que ele havia programado e agora não podia mais controlar com seus dedos de homem de negócios e decisões. A vida lhe seria sugada através de seus olhos onde ela mergulhava, e seria transformada em nada. Como tudo que estava à volta dela e que agora ia empalidecendo, desmatizando, até perder a cor e a forma por completo. Ela andava em direção a ele e ele via os quadris dela que balançavam sob a saia que esconde mistérios. Ele detetive e ela segredos eternos. E os sapatos que tocavam o ritmo que balançava os quadris dela. As mãos longas que seguravam a bolsa onde ela esconde os venenos e os antídotos. E a agenda de telefones. As unhas vermelhas. Cor de sangue. Cor que o sangue dele voltou a ter, depois que ele abandonou o mundo perfeito dele e veio para esse restaurante que agora desaba, pedra por pedra, enquanto ela passa entre as mesas e se aproxima dele e da janela de vidro que dá para jardim onde os manobristas plantam carros. Mobilidade. Ele gostaria de conseguir mover um músculo. Nem que fosse para fechar a própria boca, que desabara ao vê-la. Um único desejo para o gênio da lâmpada – se ele se desse ao trabalho de prestar socorro naquela hora: uma redoma. Algo que servisse de proteção contra aquela mulher que caminhava. E vinha em direção a ele com um sorriso na boca vermelha como as unhas que ele gostaria que estivessem cravadas em suas costas, desenhando um veludo cotelê tcheco ou alemão. Uma redoma poderosa que não deixasse que a imagem dela ultrapassasse. Um lugar onde ele pudesse respirar. Porque a garganta se fecha? Ele não confia mais. Agora era como se ele estivesse na estaca zero. Sem proteção contra ela que vinha caminhando em sua direção e balançando os quadris daquele jeito que hipnotiza. Tic-tac. Não são as horas. É uma bomba relógio prestes a iluminar o pouco de lucidez que restava nele. Os cabelos dela. Longos. Ele se penduraria nos cabelos longos dela. Se amarraria com os cabelos longos dela. Os cabelos que balançam enquanto ela caminha balançando os quadris no compasso da música do sapato sobre a madeira do piso que vai se desfazendo e apagando as pegadas dela. Uma chance. Ele gostaria de ter uma única chance de fazer qualquer coisa. Mas as palavras se engarrafaram em sua garganta seca. Os músculos enrijeceram. Os olhos vidrados. Pensamentos congelados na frigideira de idéias que era a mente dele naqueles segundos de tortura larga. Ele manteria a pose se soubesse qual era a adequada para aquele momento de glória. Ele falaria alguma coisa inteligente. Ela sempre gostou de homens inteligentes. Mas ela está parada na frente dele, com aquele sorriso meio de lado. Ele tenta dizer palavra, mas ela dispara um boa noite e as cadeiras voam. Venta muito dentro deste restaurante. A próxima respiração. A próxima palavra. O próximo arfar. O futuro é vermelho. E não pertence a ninguém.  




Enleio




Talvez porque eu não soubesse mais o que era profético eu tenha recostado em tantas cabeceiras. Tantas bobeiras que se faz quando se recebe um agrado. Ou uma migalha, o que é a mesma coisa. Mas eu ainda olho para você e vejo todos juntos num espelho que enquadrei em riga e pendurei nos vales da minha memória. Meu copo de veneno guardado para daqui a pouco, para daqui um pouco. Por pouco não me perco neste devaneio durante esta reunião de gravatas enfadonhas que fazem meus olhos girarem sem sair da órbita. Voltamos a ser crianças? Brincamos de esconde-esconde? Ou é só mais um susto que a nova gramática e essas redes de relacionamento sem relacionamento me pregam. Você, que já foi meu messias de cabelos esvoaçantes numa praia deserta e paradisíaca, agora arrasta suas cruzes deixando sulcos no asfalto da maturidade. Lembra da nossa música? Eu não. Já tentei, mas não consigo me lembrar. Quando exijo muito da memória, ela me traz um você cantarolando, mas o vento do nosso passado encobre tua voz e só sobram os sulcos dos teus joelhos nas tuas calças jeans. Quando exijo pouco, me vem você em várias caras diferentes, como se você fosse muita gente, uma desgraça ou um apogeu. Queria ser Moira para fazer linhas retas ao invés de me vestir com a roupa de gala da confusão. Mas agora não é possível: a gravata da outra ponta da mesa me pergunta qualquer coisa, eu concordo e sorrio.


Planos



Ele é louco por fotos. E eu sou louca pelas fotos dele. E porque ele gosta de fotos é que eu acho que ele me olha desse jeito. E eu faço pose porque eu sei que ele gosta. Entreabro os lábios que ele beija loucamente quando desliga as luzes e esquece a câmera. O cotovelo mais para cima. A minha curva que ele mais gosta. Eu pisco os olhos devagar. Lânguida como qualquer mulher deve ser nessa hora. E ele faz um click a mais. Eu me viro de costas para alcançar o copo de água. Me estico um pouco mais. Ele, atrevido, aperta o botão. E eu fico assim. Planos? Nenhum por hora...




Para sempre Paris



Da janela ela podia ver o Sena, desenrolando devagar e, ao fundo, a Torre Eiffel. Da cozinha, o cheiro doce de croissant que acabava de sair do forno. Era assim cada sábado, o dia em que ele voltava para casa. O dia em que as viagens de trabalho se interrompiam para que ela pudesse se aninhar nos braços dele. A preguiça ainda estava dentro dela e teimava em sair. A calcinha branca de algodão se enrolava um pouco na cintura, cada vez que ela girava na cama, fazendo hora para levantar. O relógio marcava 7 horas da manhã e o sol já estava morno. Corria pelas tábuas do assoalho, brincando pelas frestas. Silêncio total. Flores no jardim. O vinho na geladeira. Os queijos esperando. Ela encheu a banheira e mergulhou. O cigarro aceso esquecido no cinzeiro sobre o criado-mudo. Óleo de banho. Sais. Devagar. Um arrepio. Ela cantarolou, entre dentes: La bohème, la bohème, On était jeunes, on était fous, La bohème, la bohème, Ça ne veut plus rien dire du tout... Os olhos fechados. Mais um suspiro. A toalha branca e macia. Gotas de água pelo corpo nu que caminhava pelo quarto. Ela se abaixou e puxou debaixo da cama a mala. Esvaziou suas gavetas e seu armário. Antes de fechar a mala, guardou dentro dela um porta-retrato com uma foto dele. Cadeado. O espelho que revelava uma mulher nova, vestida de azul. Ela ajeitou o batom, as meias e os saltos altos. Seus sapatos faziam barulho no assoalho. A escada que rangia. A porta que se abriu para o inesperado. O taxi até o aeroporto. Passagem de ida e volta, no caso de se arrepender. Voar.

Ele chegou perto das 6 da tarde. Abriu a porta já sorrindo, antecipando o abraço, o beijo, o olhar. Passou pelo batente sem já saber onde trancar sua ansiedade, mas deu com um croissant ainda dentro do forno. Descarregou suas malas na sala da lareira. Abriu as portas que davam para a varanda e para o Sena, que tinha a torre ao fundo. Subiu devagar a escada que rangia pensando em não acordá-la. Deu com o quarto vazio. Sob o abajur, um bilhete: Sempre teremos Paris.



O que resta



Quando tudo desmorona
Nos prendemos
Apenas ao que é familiar.





terça-feira, 26 de março de 2013

O mundo perfeito




A gravata dele tinha o nó perfeito, ela sabia bem. Tudo perfeitamente encaixado debaixo do colarinho branco da camisa branca de listinhas vermelhas. Vermelho de pecado. A calça em tom escuro combinava perfeitamente com o cinto, os sapatos e as meias pretas. Ele tinha as mãos grandes. Dedos longos e largos. Uma pele de leite que a fazia tremer só de pensar. Um rosto de linhas muito definidas, um quadrilátero que demonstrava força e compreensão das coisas. Barba perfeitamente aparada que lhe dava um aspecto majestoso. Andava com as costas alinhadas. O relógio no braço direito quase nunca era consultado, para alegria de quem estivesse por perto dele. Ela pode sentir o perigo quando passou pela porta e olhou nos olhos dele, quando ela cruzou o portal para dentro do mundo perfeito dele. Ela saltou das nuvens em que vivia, para cair naquele precipício cartesiano. Ela vulcão e ele a aritmética dos fatos. Pode ser que ele tivesse fraquejado e estivesse caindo para cima, saindo daquele mundo sem improviso... que estivesse se perdendo. Ela realmente pensou nesta possibilidade, enquanto alisava o peito dele através da camisa branca de listinhas vermelhas com o colarinho  alinhado. Mas tudo isso também poderia ser um engano. Ele tinha se acostumado a viver sem ganhar nem perder, pois jogava somente o próprio jogo. Controlador. Ele precisava desaprender a ficar só. E ele não sabia bem o que fazer com a insuportável leveza que ela transpirava. Aquela noite se tornara muito diferente de tudo, pois era o fim do dia em que ele receava ter acordado sem seu escudo. “E, então? Cadê o pai daquela menina? Será que ninguém vem tomar conta dela? Ela chega e invade meu mundo perfeito e torna aquela dor de amor quase irremediável?”  Ele filosofava enquanto ela olhava nos olhos dele de um jeito manso, sorrindo de uma maneira leve, com o rosto um pouco inclinado para o lado, como que esperando o beijo que não sabia se viria. O incômodo dele é que ela era leve feito uma pluma, quase mais leve que o ar. Flutuava entre as paredes do apartamento dele. Ela sabia esperar e isso o incomodava. Ela não tinha correntes. Era livre como um vento morno que vem do mar. As mãos dela lhe despenteavam o cabelo. Ela quieta, mas ele podia ouvir a voz dela, envolvente, quase um canto de sereia. E ele jurou que não pediria. Não diria uma palavra, pois corria o risco de perder o controle sobre o mundo perfeito dele. Se ficasse calado ela não lhe alcançaria, mesmo voando mansa pelo céu daquele apartamento. Os lábios dela se afastaram um pouco. Úmidos. Era quase a visão de um beijo. E ele teve medo. Como sempre tinha, quando esquecia de seguir as regras que impunha para sua vida. E ele quase disse. Da boca dele quase saíram palavras que poderiam iluminar o caminho. Mas ele sentiu o colarinho da camisa pequeno demais, enquanto os lábios dela lhe tocaram o pescoço e os dentes dela mordiscaram de leve e bem devagar. Ele sabia que ambos não conseguiriam esperar muito. Ela iluminada: uma constelação. Ele morto de medo e escondendo-se atrás dos dogmas que criara e aperfeiçoara dia-a-dia. Mas a presença dela era mais forte que qualquer regra que ele jamais poderia imaginar. Ela olhava agora nos olhos dele e ele desviou o rosto com medo de não aguentar aquela intensidade. Ele fugia, mas também lutava para que ela não fosse muito longe, para que não voasse para onde ele não a pudesse ver. Ele não queria que aquilo tudo acontecesse porque ele não queria que aquilo tudo acabasse. Coração rasgado. Gato escaldado fugindo do que mais desejava. Ela estava ali agora, mas poderia se apaixonar por outra pessoa e levar com ela os alicerces todos daquele mundo perfeito que ele construíra. Mesmo assim, ele a puxou para si e agora sentia as mãos macias e quentes dela roçando suas costas, massageando cada milímetro dos seus músculos cansados de normas.  Ela era uma janela para um mundo de cores que ele evitava e temia. Aquilo tudo era um ponto de partida para um mundo que ele, na verdade, desconhecia. As mãos dela agora seguravam sua gravata de seda pura. Ela estava perto demais. O perigo era que ela, junto com o nó da gravata, desatasse os nós que ele levara tanto tempo para construir. Agora era a decisão final. Caminho sem volta. Se ele permitisse que ela desatasse a gravata, seu mundo perfeito estaria perdido, e ele, finalmente, estaria salvo da vida que escolhera. Ele só não sabia se sua alma sufocada poderia suportar viver no mundo onde as cadeiras voam, a canção embala e o céu é cor-de-rosa.

Um quadro




Morte súbita.
Caminhar por chão de brasas.
Choques elétricos.

Ela podia imaginar milhões de maneiras de torturar aquele homem até que ele pedisse água. Ela lhe daria um gole. Nada mais que isso. Um gole. Uma única gota para que ele pudesse estar quase confiante, quase confortável. Ele sorriria em agradecimento e ela iniciaria a sessão de torturas novamente. Lento. Bem devagar. Até que ele pedisse água novamente. Ela faria um pequeno intervalo para que ele pudesse respirar com alívio. Para que ele pudesse piscar os olhos molhados. Ela lhe daria uns três segundos para que ele relaxasse os músculos. E quando ele pensasse que já estava livre de seu calvário, ela recomeçaria tudo outra vez.

Bem devagar.

Ela podia ouvir os gritos que ele daria enquanto durasse seu sofrimento. Podia ver os olhos dele suplicando perdão. Ela podia sentir cada músculo dele retesado, em frangalhos. Ele curvado...quase um ancião. Mas nas idéias dela de punição e de castigo bateu um vento morno que vinha do mar. E ao invés de ouvir os gritos tresloucados dele, o que lhe chegou aos ouvidos foram as promessas feitas. Ela cerrou com força os olhos, mas não a tempo de evitar que visse os dele: olhos de menino. As mãos dela tateavam os braços dele, perdidas nos aclives de cada músculo, na poça de cada esforço.

O pecado lhe pertencia.
E ela pode entender que a dor era somente dela.
Raios elétricos.
Águas profundas.
E o sorriso dele em todas as paredes.

O caminho





Porque você agora está tão distante,
Se há um segundo
Eu olhava seus poros de perto?

Porque eu continuo
Andando na sua direção
E nada no mundo vai me fazer parar
Nem a morte vai me fazer parar
De andar na sua direção...

Porque você é meu destino
E seu eu morrer
Eu vou continuar andando
Na sua direção
E conquisto a eternidade
Para viver ao teu lado.

Porque o que sinto
É maior que nós dois
E isso torna
O que fazemos
Melhor do que o que somos.

Um decote





Os seios dela estavam perdidos entre os pelos da gola da blusa que usava e os cabelos que desciam lânguidos pelos ombros. Ele olhava cada milímetro de pele que o decote permitia com um friozinho na espinha. Seus olhos caminharam um pouco mais. Para cima. Dando voltas tresloucadas pelo pescoço dela, chegando à boca. Boca de carne e de uma delicadeza que não se vê em qualquer cidade. Ela falava. Ele só não sabia se ela falava mais com a boca vermelha ou com as mãos de dedos longos. Italiana, com certeza. Apesar da curva do rosto: aquela que liga o queixo às orelhas e que tinha uma melancolia especial das bailarinas francesas. E, neste instante, ela sorriu. Sorriu de um jeito fácil e sincero. Ele quase perdeu a concentração. Alguém disse alguma coisa absolutamente comum e ela riu. Ele subiu um pouco mais. Curioso. Ela olhava para o lado. Para o dono da piada. Olhos de perdão por uma bobeira qualquer, dita naquela altura da noite. Os olhos dela eram comuns. De um castanho comum. Mas havia neles uma profundidade que o incomodou. Algo que lesse dele o mais secreto dos segredos. Então, ele se ajeitou melhor na cadeira. Ela acendeu um cigarro e era como se houvesse uma ligação indivisível de atos. Cigarro, mãos, dedos, boca, fumaça. Ele pode ver uma graça toda especial no jeito dela ignorar o incômodo alheio com o pequeno vício que deliciava. Ali estava uma mulher de movimentos suaves. E com um gesto delicadíssimo, ela recostou o rosto de pele clara na mão esquerda. Fez-se um ângulo perfeito para uma foto em preto e branco. Ele olhava os cabelos dela. Lisos. De vários tons. Caiam-lhe de lá de cima até entornar nos seios do decote de pelos. E o decote lhe mostrava um tanto. Ele hipnotizado. Ela nem sonhando com a existência dele. Ele mergulharia no decote como um golfinho depois do arco e se perderia ali por dentro. Ela, seguramente, era alta. Os longos braços denunciavam um Himalaia. De soslaio, ele pode ver os saltos. Ela seria ainda mais alta naquela madrugada, quando levantasse. E ele desejou que isso acontecesse. Que ela fosse fazer qualquer coisa para que ele conseguisse admirar aqueles saltos finíssimos mais de perto. Mas ela estava envolvida no entretenimento de outra estória que lhe era contada como um quase-segredo. Seus olhos estavam felizes e ela sorria um pouco. Meio de lado. Enquanto ouvia, levou um copo à boca de carne e sorveu uma bebida que ele não sabia bem o que era. Ela sorriu novamente. E naquele momento ele estava ainda mais absorto. Mais curioso. Quase impaciente. Ela chegou mais perto, para que o interlocutor lhe falasse ao ouvido. O decote abriu um pouco mais. Ele pode ver quase toda a curva do seio. Ela sorria, interessada no segredo que lhe contavam. Depois levou a mão à boca, como se para calar um comentário que jamais poderia ser feito. Recostou-se na cadeira e sorriu para outra pessoa. Acendeu outro cigarro com a mesma leveza. Tinha uma expressão de tranqüilidade. Da maneira em que estava, ele agora podia olhar seu rosto de frente. Observou o lápis que lhe contornava os olhos. Os cílios longos que piscavam lentamente. Ela pôs o cabelo atrás da orelha. Depois juntou todo o cabelo com as duas mãos e os enrolou em um pequeno coque que soltou logo a seguir. Ele, boquiaberto, podia acompanhar cada fio de cabelo que lhe caia no decote de pelos. Ela sorriu, em agradecimento, ao garçom que lhe entregava outra bebida. Os movimentos dela estavam mais lentos agora. Ela roçou o próprio pescoço e deixou que sua mão penetrasse o decote. Bem lentamente. Quase um carinho. Um carinho que ele faria se pudesse. Ali, do esconderijo onde ele se encontrava, ele não perdia um único detalhe. A cada levantar de sobrancelhas que ela dava ele sabia se ela gostara ou não do que fora falado. Ele, quase incontido, imaginava maneiras impossíveis para se aproximar. Ela distraída e ele estrategista. Ela uma chuva morna, ele uma queda no abismo. E, de repente, ela olhou para ele. Olhou como olhava para qualquer pessoa que estivesse sentada naquela mesa de amigos. Abriu um largo sorriso e ele quase se sentiu um menino. Desprotegido. Cheio de medos. Louco por travessuras. Ela apoiou os cotovelos na mesa, com o rosto entre as mãos. Ela olhava e ele nem sabia bem o que fazer. Ela olhava nos olhos dele. E quanto mais ela recostava o rosto nas mãos, mais seu decote entregava a ele um mar calmo e desconhecido. E, naquele momento, ele já nem lembrava mais se sabia nadar. A boca de carne não falava. As mãos de veludo não falavam. Os olhos dela diziam muito. E ele, pego em sua investigação secreta, não traduzia com clareza o aramaico que os olhos dela diziam. Um momento depois ela se distraiu com alguém que contava outro caso. Ela riu um pouco e se concentrou na conversa da mesa onde estava. Esqueceu dele. Quando ele chegou em casa, pensava no que teria feito se pudesse. Melhor: ele pensou no que teria feito se tivesse mais coragem que um rato. Mas um bom rato certamente faria loucuras se pudesse mergulhar naquele decote. A madrugada demorou a minguar. Ele, deitado em sua cama desenhava aquela curva tão admirada no teto do quarto. Solitário, mas com curvas. Decote de curvas na memória do que poderia ter sido. Mas, agora, o desenho sinuoso no teto do quarto era tudo o que um rato poderia ter. 

Lucidez





E eu estou bem aqui:
No fim do mundo
Ou no começo de outro.
Eu preciso gritar
Para conservar
A sanidade de todos.


Na direção do abismo





Eu queria dizer que aquele foi nosso encontro de adeus, mas tenho que confessar que sou incapaz disso. Antes dele me ligar, eu estava firme na minha decisão de romper com essa estória maluca e dizer para sempre: nunca mais. E então o telefone toca e a paisagem que se apresenta tem um milhão de detalhes de paz. E eu, como que vendada, me entrego aos perigos que essa paz me oferece. Sem receios. Sem futuro. Caminho tranqüilamente em direção ao abismo. E então, já sei do seu sorriso de boas vindas. Do teu hálito quente. Do cheiro da tua pele que é um convite. Sei dos olhos de mel. Sei do suor. Sei das mãos macias. Das tuas mãos segurando as minhas. Dos meus anéis que machucam as tuas. Dos meus planos. Dos seus compromissos.