Fazia
um sol morno de fim de primavera. Ela observava pela janela da cozinha o portão
de ferro já carcomido pelo tempo. Ela sabia que a visita ia chegar a qualquer
momento, anunciando com ela o fim da tarde e o fim de um largo período de paz.
Foi
até a varanda que dava para o jardim e observou-o sentado em uma grande
cadeira, com parte das pernas coberta por uma colcha de patchwork rota pelo
passar de tantos anos. No começo ela se irritava quando o via arrastar a colcha
pela casa. Depois de algum tempo ela se acostumou com as cores do tecido e
aprendeu a fingir que não se incomodava. Se lembrava de um episódio de
discussão entre eles. Ela o puniu escondendo a colcha. E pode gozar de um
prazer profundo e inenarrável ao vê-lo, como louco, durante dias, revirando
armários e gavetas à procura daquilo que ela, secretamente, chamava de trapo.
E
agora ele estava no jardim. Sereno como nunca. Às vezes sorria, como que
lembrando de alguma cena da juventude. Deitava a cabeça no espaldar da cadeira
e fechava os olhos. Depois, como que acordando de um sonho, endireitava-se da
maneira que lhe era possível, ajeitava os óculos sobre o nariz e alisava a colcha.
Ele
havia ligado o aparelho de som, há tantos anos esquecido. Tocava uma música
muito antiga de uma cantora sulamericana. Da canção, ela não entendia sequer
uma palavra. Mas os acordes lhe causavam um ciúme que poderia atravessar a
eternidade.
Voltou
à cozinha e voltou aos seus afazeres, sempre de olho no portão, através da
janela pequena.
Havia
mais de 3 horas que ele estava no jardim, em compasso de espera. Ela já estava
preocupada com ele. A saúde dele já não era das melhores havia anos e, talvez,
um golpe de vento qualquer pudesse minar ainda mais a fragilidade que se
instalara naquele corpo.
Preparou
uma grande chaleira do chá que ele mais gostava. Desceu com uma bandeja até o
jardim e colocou sobre uma pequena mesa o chá, duas xícaras que pertenceram à
família dele, um pote com cubos de açúcar, guardanapos de linho e duas pequenas
colheres de ouro.
Ele
parecia nem fazer conta dela por perto. Olhava para o Sena, como se nunca
tivesse estado fora dali. O olhar dele se perdia na distância e, às vezes, ele
respirava profundamente, como que com saudade de um tempo que jamais poderia
ser resgatado.
Diante
disso, ela, sem dizer palavra, subiu os degraus que levavam à sala da lareira e
foi ter na cozinha. Quando olhou pela janela, somente pode ver o portão da casa
se fechando. Subiu-lhe um frio pela espinha e seu estômago colou-se nas costas.
Antes que o portão fechasse por completo, ela pode lembrar de todas as fotos
que vira penduradas na parede do escritório que ele usava em casa. As fotos
para “los dias de frio”. Pode lembrar da mulher de cine que ele
reverenciava sem pudor. Os olhos sinceros dela. As mãos longas. Um sorriso
secreto. A tez da tenra fase balzacquiana.
Mas
isso já levava muitos anos.
E
então ela caminhou, com passos de gato grande, atravessando os cômodos e pôs-se
atrás da cortina da porta da varanda.
Via
que a visita se sentara de frente para ele e de costas para a varanda. Usava um
casaco leve e trazia uma bolsa grande, que colocou no chão, após guardar os
óculos de sol.
A
tarde caía lentamente.
Ele
sorria como um menino.
A
visita se curvou e tocou a colcha de patchwork rota. Olhou para ele sem dizer
palavra e ele olhou nos olhos dela como que dizendo: você sempre esteve
comigo...
Deram-se
as mãos. Todas as quatro.
Ambos
olhando o Sena e, talvez, pensando em quantas outras vezes já haviam feito isso
juntos.
Depois
de um largo tempo, ela lhe serviu o chá. Ao pegar a xícara, ele tocou novamente
a mão dela. Ela deve ter sorrido, pois os olhos dele se espremeram de um jeito
que a observadora jamais tinha visto.
Recostaram-se
nas cadeiras e ficaram admirando o cair do sol da tarde morna de primavera,
emoldurados pelas flores que ele tanto gostava e do jardim que um dia já fora
da visitante.
Disseram
algumas frases embalados pelas velhas canções da cantora. Riram um pouco. Ele,
o marido, externava uma leveza até então desconhecida para sua esposa, a
observadora.
A
visitante, uma brasileira, apesar da idade, ainda mantinha as costas eretas e
os gestos extremamente delicados da juventude.
Ele
lhe mostrou fotos. Talvez dos filhos e dos netos. Talvez da juventude de
paixão. Ela olhava tudo com muito vagar, num prazer manso que só a idade
permite.
Ela
lhe entregou um pequeno pacote, amarrado com uma fita vermelha. Ele fez menção
de abrir e ela o impediu, dizendo qualquer coisa suave. Ele deixou que o
pequeno pacote repousasse em seu colo, sobre a colcha rota de patchwork que as
mãos dela um dia teceram.
A
tarde já ia.
Ela
tomou as mãos dele entre as suas e depois beijou cada uma delas. Disse algumas
palavras que ficaram encobertas pela voz da cantora. Se levantou calmamente,
beijou-lhe a testa e a boca de leve, pegou sua bolsa e sumiu pelo caminho no
jardim que levava ao portão enferrujado.
Saiu
pela rua calma de Herblay e sumiu na lembrança, sem deixar vestígios.
O
perfume dela persistiria no jardim por anos. Ele, entregue a uma resignação
absoluta, deixava que lágrimas sufocadas pelo passar dos anos lhe molhassem a
face cansada e, em pequenas gotas, alcançassem o pequeno pacote com laço de
fita vermelha que tinha sobre as pernas.
Ele
alisou, saudoso, a colcha de patch, com um sorriso nos lábios. Ele sabia que
esta seria a última visita. E ele nem precisava de mais nada, pois carregava
tudo dentro do coração.
A
esposa, ainda estática atrás da cortina, pela primeira vez, em quase 30 anos,
sentiu alívio. A esposa conseguia, agora, respirar. Enchia os pulmões de ar. Um
ar fresco de fim de primavera. Não tinha mais ciúmes da colcha. Não tinha mais
ciúmes das fotos amareladas da brasileira elegante. Agora a esposa sabia que
ela jamais ia voltar.
Sem
visitas para o futuro.
E
a esposa se perguntava: o que pode ser tão forte para atravessar tanto tempo?
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