terça-feira, 26 de março de 2013

Um decote





Os seios dela estavam perdidos entre os pelos da gola da blusa que usava e os cabelos que desciam lânguidos pelos ombros. Ele olhava cada milímetro de pele que o decote permitia com um friozinho na espinha. Seus olhos caminharam um pouco mais. Para cima. Dando voltas tresloucadas pelo pescoço dela, chegando à boca. Boca de carne e de uma delicadeza que não se vê em qualquer cidade. Ela falava. Ele só não sabia se ela falava mais com a boca vermelha ou com as mãos de dedos longos. Italiana, com certeza. Apesar da curva do rosto: aquela que liga o queixo às orelhas e que tinha uma melancolia especial das bailarinas francesas. E, neste instante, ela sorriu. Sorriu de um jeito fácil e sincero. Ele quase perdeu a concentração. Alguém disse alguma coisa absolutamente comum e ela riu. Ele subiu um pouco mais. Curioso. Ela olhava para o lado. Para o dono da piada. Olhos de perdão por uma bobeira qualquer, dita naquela altura da noite. Os olhos dela eram comuns. De um castanho comum. Mas havia neles uma profundidade que o incomodou. Algo que lesse dele o mais secreto dos segredos. Então, ele se ajeitou melhor na cadeira. Ela acendeu um cigarro e era como se houvesse uma ligação indivisível de atos. Cigarro, mãos, dedos, boca, fumaça. Ele pode ver uma graça toda especial no jeito dela ignorar o incômodo alheio com o pequeno vício que deliciava. Ali estava uma mulher de movimentos suaves. E com um gesto delicadíssimo, ela recostou o rosto de pele clara na mão esquerda. Fez-se um ângulo perfeito para uma foto em preto e branco. Ele olhava os cabelos dela. Lisos. De vários tons. Caiam-lhe de lá de cima até entornar nos seios do decote de pelos. E o decote lhe mostrava um tanto. Ele hipnotizado. Ela nem sonhando com a existência dele. Ele mergulharia no decote como um golfinho depois do arco e se perderia ali por dentro. Ela, seguramente, era alta. Os longos braços denunciavam um Himalaia. De soslaio, ele pode ver os saltos. Ela seria ainda mais alta naquela madrugada, quando levantasse. E ele desejou que isso acontecesse. Que ela fosse fazer qualquer coisa para que ele conseguisse admirar aqueles saltos finíssimos mais de perto. Mas ela estava envolvida no entretenimento de outra estória que lhe era contada como um quase-segredo. Seus olhos estavam felizes e ela sorria um pouco. Meio de lado. Enquanto ouvia, levou um copo à boca de carne e sorveu uma bebida que ele não sabia bem o que era. Ela sorriu novamente. E naquele momento ele estava ainda mais absorto. Mais curioso. Quase impaciente. Ela chegou mais perto, para que o interlocutor lhe falasse ao ouvido. O decote abriu um pouco mais. Ele pode ver quase toda a curva do seio. Ela sorria, interessada no segredo que lhe contavam. Depois levou a mão à boca, como se para calar um comentário que jamais poderia ser feito. Recostou-se na cadeira e sorriu para outra pessoa. Acendeu outro cigarro com a mesma leveza. Tinha uma expressão de tranqüilidade. Da maneira em que estava, ele agora podia olhar seu rosto de frente. Observou o lápis que lhe contornava os olhos. Os cílios longos que piscavam lentamente. Ela pôs o cabelo atrás da orelha. Depois juntou todo o cabelo com as duas mãos e os enrolou em um pequeno coque que soltou logo a seguir. Ele, boquiaberto, podia acompanhar cada fio de cabelo que lhe caia no decote de pelos. Ela sorriu, em agradecimento, ao garçom que lhe entregava outra bebida. Os movimentos dela estavam mais lentos agora. Ela roçou o próprio pescoço e deixou que sua mão penetrasse o decote. Bem lentamente. Quase um carinho. Um carinho que ele faria se pudesse. Ali, do esconderijo onde ele se encontrava, ele não perdia um único detalhe. A cada levantar de sobrancelhas que ela dava ele sabia se ela gostara ou não do que fora falado. Ele, quase incontido, imaginava maneiras impossíveis para se aproximar. Ela distraída e ele estrategista. Ela uma chuva morna, ele uma queda no abismo. E, de repente, ela olhou para ele. Olhou como olhava para qualquer pessoa que estivesse sentada naquela mesa de amigos. Abriu um largo sorriso e ele quase se sentiu um menino. Desprotegido. Cheio de medos. Louco por travessuras. Ela apoiou os cotovelos na mesa, com o rosto entre as mãos. Ela olhava e ele nem sabia bem o que fazer. Ela olhava nos olhos dele. E quanto mais ela recostava o rosto nas mãos, mais seu decote entregava a ele um mar calmo e desconhecido. E, naquele momento, ele já nem lembrava mais se sabia nadar. A boca de carne não falava. As mãos de veludo não falavam. Os olhos dela diziam muito. E ele, pego em sua investigação secreta, não traduzia com clareza o aramaico que os olhos dela diziam. Um momento depois ela se distraiu com alguém que contava outro caso. Ela riu um pouco e se concentrou na conversa da mesa onde estava. Esqueceu dele. Quando ele chegou em casa, pensava no que teria feito se pudesse. Melhor: ele pensou no que teria feito se tivesse mais coragem que um rato. Mas um bom rato certamente faria loucuras se pudesse mergulhar naquele decote. A madrugada demorou a minguar. Ele, deitado em sua cama desenhava aquela curva tão admirada no teto do quarto. Solitário, mas com curvas. Decote de curvas na memória do que poderia ter sido. Mas, agora, o desenho sinuoso no teto do quarto era tudo o que um rato poderia ter. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Quero saber sua opinião.