A
pena que abandonaram segue escrevendo, apesar de mim. E apesar de mim as coisas
seguem acontecendo e tomando rumos estrategicamente calculados pelo acaso. Como
aquele encontro que não houve porque o destino roubou minha coragem quando eu
descia as escadarias longas dos meus medos. Oco. O barulho é oco quando tocam
em mim. Estou de todo pronta para que a música me invada e faça de mim sua
marionete. Homem grande guiado pelos fios do destino que, mesmo não existindo
de fato, impera. O imperativo. O passado perfeito do imperativo do verbo fome.
Fome dela, que se desenha na minha frente e quase já não está, se eu não aperto
os olhos mais um pouco. Eu oco e ela plena na sua inteireza. Os cabelos dela ao
vento que eu sopro com minha boca quente e cheia de saliva. Minha boca enorme
para morder as ancas dela. Devagar. Depois um pouco mais afoito. O barulho
muda. Não há mais eco. Estou me enchendo dela. E quero ficar cheio até
transbordar. Uma inundação de pernas dela. Com os sapatos de saltos altos e
finos entornando pela borda da minha boca que tem fome. Mais fome. Cada vez
mais fome dela. O eco sumiu. Estou ouvindo a música que veio com o gosto dela.
Estou cheio dela e de notas musicais, solfejos, claves de fá e de sol. Arpejos.
Arfantes estão os peitos dela. Subindo e descendo numa velocidade estonteante.
Eu estou por cima agora. Babando nela, que invade tudo: meu corpo, minha mente,
os objetos da sala de jantar... o lugar onde mato minha fome. De frente para o
espelho do móvel de canto, que deixa a bunda dela mais redonda. Eu perco o
controle. Apesar de mim, o relógio segue num tic-tac infinito. O transe. O
ruído da pena que se esfrega no papel, maliciosamente, para que eu possa contar
esta estória. Ela se esfrega em mim também. Esfrega pele com pele rasgando
minha solidão. A boca dela está voando pela casa. Bocas vermelhas por todos os
lados. Uma tempestade de bocas. Nas paredes. Na geladeira branca que agora
serve de apoio e guarda o copo de água gelada que eu vou precisar quando eu
ficar oco de novo. Mas ela se balança e me tira a atenção de meu plano de
futuro. Ela balança a forquilha que é a imagem que eu tenho das ancas e das
pernas dela agora. Ela sorri para mim com a boca vermelha que voa, e se vira de
costas. Apóia as mãos na geladeira branca e espera. Fome. Eu tenho fome e agora
estou na cozinha. Ela ri alto. Ela ri muito. Não sei porque está feliz. E eu
caminho em sua direção, cego. Eu estou com os olhos bem abertos mas não consigo
ver nada além das ancas dela que balançam na tempestade de bocas vermelhas que
voam pela casa toda. Ela cala em mim o que eu poderia gritar. Ou escrever, não
sei. Ela é minha interjeição. E eu caminho em direção a ela pelos corredores
que se alongam na minha memória de menino. Ela se abaixa um pouco mais e coloca
a mão direita na parte de trás da coxa direita e me olha, sorrindo de lado. E
eu caminho direto, sem ver direito o caminho. Me aproximo, num ofegar de galope
no deserto. Ela tem um canto secreto onde esconde um não-sei-quê que eu quero.
E então, eu vasculho cada canto dela. Cada detalhe dela. Eu entro em cada canto
escuro dela e procuro. Agora um pouco mais. E quando ela percebe que eu estou
assim, sem governo, escapa de mim de novo, para encontrar as bocas vermelhas em
outro cômodo. E eu a sigo sem ver nada. Meus olhos giram nas órbitas. Rotação e
translação de olhos. Os meus. A cada passo estou mais perto. Agora é ela quem
voa pela casa toda. Me esvazio de todas as minhas incumbências e caço esta
mulher pela casa, como quando corria atrás de borboletas. Somente um segundo é
o bastante para perceber que ela não me pertence mais. Subo, de novo, as
escadarias dos meus medos e me embrulho nos meus papéis de rascunho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Quero saber sua opinião.