A gravata dele tinha o nó perfeito, ela sabia bem. Tudo perfeitamente
encaixado debaixo do colarinho branco da camisa branca de listinhas vermelhas.
Vermelho de pecado. A calça em tom escuro combinava perfeitamente com o cinto,
os sapatos e as meias pretas. Ele tinha as mãos grandes. Dedos longos e largos.
Uma pele de leite que a fazia tremer só de pensar. Um rosto de linhas muito
definidas, um quadrilátero que demonstrava força e compreensão das coisas.
Barba perfeitamente aparada que lhe dava um aspecto majestoso. Andava com as
costas alinhadas. O relógio no braço direito quase nunca era consultado, para
alegria de quem estivesse por perto dele. Ela pode sentir o perigo quando
passou pela porta e olhou nos olhos dele, quando ela cruzou o portal para
dentro do mundo perfeito dele. Ela saltou das nuvens em que vivia, para cair
naquele precipício cartesiano. Ela vulcão e ele a aritmética dos fatos. Pode
ser que ele tivesse fraquejado e estivesse caindo para cima, saindo daquele
mundo sem improviso... que estivesse se perdendo. Ela realmente pensou nesta
possibilidade, enquanto alisava o peito dele através da camisa branca de
listinhas vermelhas com o colarinho alinhado. Mas tudo isso também poderia ser um
engano. Ele tinha se acostumado a viver sem ganhar nem perder, pois jogava
somente o próprio jogo. Controlador. Ele precisava desaprender a ficar só. E
ele não sabia bem o que fazer com a insuportável leveza que ela transpirava. Aquela
noite se tornara muito diferente de tudo, pois era o fim do dia em que ele
receava ter acordado sem seu escudo. “E, então? Cadê o pai daquela menina? Será
que ninguém vem tomar conta dela? Ela chega e invade meu mundo perfeito e torna
aquela dor de amor quase irremediável?” Ele
filosofava enquanto ela olhava nos olhos dele de um jeito manso, sorrindo de
uma maneira leve, com o rosto um pouco inclinado para o lado, como que
esperando o beijo que não sabia se viria. O incômodo dele é que ela era leve
feito uma pluma, quase mais leve que o ar. Flutuava entre as paredes do
apartamento dele. Ela sabia esperar e isso o incomodava. Ela não tinha
correntes. Era livre como um vento morno que vem do mar. As mãos dela lhe
despenteavam o cabelo. Ela quieta, mas ele podia ouvir a voz dela, envolvente,
quase um canto de sereia. E ele jurou que não pediria. Não diria uma palavra,
pois corria o risco de perder o controle sobre o mundo perfeito dele. Se
ficasse calado ela não lhe alcançaria, mesmo voando mansa pelo céu daquele
apartamento. Os lábios dela se afastaram um pouco. Úmidos. Era quase a visão de
um beijo. E ele teve medo. Como sempre tinha, quando esquecia de seguir as
regras que impunha para sua vida. E ele quase disse. Da boca dele quase saíram
palavras que poderiam iluminar o caminho. Mas ele sentiu o colarinho da camisa
pequeno demais, enquanto os lábios dela lhe tocaram o pescoço e os dentes dela
mordiscaram de leve e bem devagar. Ele sabia que ambos não conseguiriam esperar
muito. Ela iluminada: uma constelação. Ele morto de medo e escondendo-se atrás
dos dogmas que criara e aperfeiçoara dia-a-dia. Mas a presença dela era mais
forte que qualquer regra que ele jamais poderia imaginar. Ela olhava agora nos
olhos dele e ele desviou o rosto com medo de não aguentar aquela intensidade.
Ele fugia, mas também lutava para que ela não fosse muito longe, para que não
voasse para onde ele não a pudesse ver. Ele não queria que aquilo tudo
acontecesse porque ele não queria que aquilo tudo acabasse. Coração rasgado.
Gato escaldado fugindo do que mais desejava. Ela estava ali agora, mas poderia
se apaixonar por outra pessoa e levar com ela os alicerces todos daquele mundo
perfeito que ele construíra. Mesmo assim, ele a puxou para si e agora sentia as
mãos macias e quentes dela roçando suas costas, massageando cada milímetro dos
seus músculos cansados de normas. Ela
era uma janela para um mundo de cores que ele evitava e temia. Aquilo tudo era
um ponto de partida para um mundo que ele, na verdade, desconhecia. As mãos
dela agora seguravam sua gravata de seda pura. Ela estava perto demais. O
perigo era que ela, junto com o nó da gravata, desatasse os nós que ele levara
tanto tempo para construir. Agora era a decisão final. Caminho sem volta. Se
ele permitisse que ela desatasse a gravata, seu mundo perfeito estaria perdido,
e ele, finalmente, estaria salvo da vida que escolhera. Ele só não sabia se sua
alma sufocada poderia suportar viver no mundo onde as cadeiras voam, a canção
embala e o céu é cor-de-rosa.
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