sábado, 30 de março de 2013

50 Tons de Agonia




Sorte teve quem como eu, pode, na infância e início da adolescência, saber o que era o Clube do Livro[1]. Assim, pude conviver, desde a mais tenra idade, com Anna Karenina, Jean Valjean, Isaac Asimov, Otelo e Desdêmona entre outros tantos que me fizeram debruçar sobre uma literatura interessante e interessada.

O mercado editorial, neste interregno, mudou bastante, junto com a abertura política que se desenhou em nosso país, a partir dos anos 1980. Levantamos as mãos, agradecendo à NÃO realização de censura e, com isso pudemos nos achegar a outros tantos textos escondidos pelo receio da Ditadura.

Da mesma forma, a globalização e o uso da internet, mais modernamente, nos aproximou de tantos outros escritos.

Tais mudanças, todavia, não implicam, necessariamente, em uma aproximação de livros e congêneres sempre com qualidade literária, mas também com expressões individuais que, através de sites, blogs e redes sociais, nos trazem a trajetória e a história de quem, de verdade, tem coragem de declarar o que pensa.

De todo modo, no último ano, me deparei com comentários e mais comentários sobre uma tal trilogia acinzentada. Era comentada nas mesas de almoço, nos happy hours, durante os finais de semana, pelo telefone, nas redes sociais. Algo que me chamou a atenção era o fato de que todos estes comentários e os suspiros provocados pela trilogia vinham de mulheres. E essas mulheres eram de todas as idades, de todas as classes sócio-culturais. Explanavam sobre a trilogia como uma nova bíblia: algo que eu não podia entender com clareza.

Sucumbi a um best seller para saber exatamente do que se tratava, mas não consegui nutrir a mesma paixão que via nas mulheres que me rodeavam, que bamboleavam em halos de luz e paixão por um personagem absolutamente impossível no mundo real. O livro “água com açúcar” descreve o encontro de uma mocinha inocente com um jovem rico, bonito, inteligente e de sucesso, que tem preferências sexuais não tão alinhadas com o chamado de politicamente correto. Não precisa de mais nada para ser um livro clichê.

E então, quanto tempo faz que deixamos de queimar soutiens?

Quanto tempo faz que não precisamos mais lutar para poder votar?

Quanto tempo faz que estamos brigando para ter o mesmo espaço e reconhecimento no trabalho, sem precisar ter uma jornada de 10 horas a mais que o normal?

Quanto tempo faz que tentamos nos equilibrar nos saltos altos enquanto respondemos aos e-mails de clientes, cuidamos da casa e das crianças e checamos o orçamento doméstico enquanto o celular toca?

E depois de tanta estrada, de tanta luta, o que tenho visto é que o sonho de consumo não é um novo par de sapatos, mas um Sr. Grey que ofereça mandos e desmandos, que controle, que seja o provedor com encantadores olhos acinzentados e ideias de prazer.

É triste pensar que 85%[2] das mulheres apaixonadas pelo personagem principal da trilogia são casadas e mães, o que me faz pensar que muitas delas estão em um relacionamento de péssimo a ruim. Uma amiga querida me disse que tentou fazer com que o marido lesse a trilogia, sem sucesso. Ora, o caminho para melhorar o relacionamento não é um best seller, mas sim, o diálogo. Aliás, este é o melhor (ou o que se aproveita) da trilogia, ainda que as partes ali envolvidas se expressem através de um contrato. Ainda que as cláusulas contratuais declarem, apenas, as necessidades e o modo de satisfazê-las de uma única parte. É através de um instrumento jurídico fajuto (e de adesão) que um diz o que pretende e o outro esclarece se aceita. E olha que nem estamos tratando da antijuridicidade do tema, se o case fosse verdadeiro e acontecesse no Brasil. Cláusulas leoninas[3]?... 

Ora, o contrato todo teria que ser nulo do ponto de vista jurídico, já que o prazer que proclama pertence, em princípio, somente ao Sr. Grey, ou eu estaria equivocada? Mas eu não pretendo entrar na discussão dos prazeres que a submissão pode proporcionar ao submisso. Não contesto o grau de confiança que é exposto em relações desse tipo, mas me parece que a trilogia faz com que a confiança que ocorre dentro de uma relação humana deve ter prazo de validade. E, convenhamos, a questão vai muito além do que Esopo[4] poderia imaginar...

Num bate-papo com advogadas que leram o livro também me deparei com uma discussão interessante que trazia à baila a questão constitucional da dignidade humana. Ouvi, aturdida, algumas opiniões acaloradas de quem ainda estava sob o feitiço cinzento e que negociaria com muita facilidade o que reconhece como sua própria dignidade. Rizzatto Nunes[5] afirma que a dignidade humana não pode e não deve ser precificada, posto que não se trata de um simples valor. Apesar de esse ser um tema que o legislador constituinte buscou sedimentar em nosso acervo jurídico, a dignidade da pessoa humana[6] pode parecer um conceito muito aberto se não analisado no caso in concreto. É dizer, então, que existem várias dignidades e, ainda, que estas dignidades são diferentes tomando como norte as concepções que a pessoa humana faz de si mesma e não somente vetores jurídicos que formam o conceito do tema. Neste sentido teríamos que avaliar caso a caso se as pessoas envolvidas na relação citada no livro entendem suas condutas como dignas ou indignas de um ser humano.

De qualquer forma, aqui estamos tratando de uma situação hipotética, onde bem se aplicaria, se fosse o caso de uma análise jurídica sobre um fato, a Jurisprudência dos Valores[7]. E se quiséssemos que esta fogueira tivesse altas chamas, a discussão poderia se enveredar sobre o direito que temos sobre o próprio corpo ou ainda sobre a autonomia de vontade.

E a pergunta que fica é: uma mulher de verdade se submeteria a quaisquer cláusulas? A todas as vontades de um indivíduo por mais voluptuosas ou repugnantes que fossem? 

Devo esclarecer que sou absolutamente partidária do direito de escolha, mas parece-me que chegamos a um tempo em que a mulher está cansada demais para perceber-se. Cansada em demasia para olhar no espelho e ver-se inteira refletida. Com tantas tarefas, compromissos e, sendo bombardeada por critérios absurdos de beleza, esqueceu-se de que não só pode, como deve enxergar a magia de suas curvas da meia idade. Está tão distraída com o mundo que empurram para ela que não entende que os desenhos que o tempo rabisca em seu rosto nada mais é que contar sua história de vida de uma maneira diferente. Olhar para o espelho com aprovação é a mesma coisa que receber um elogio. E sorrir para si mesma, pela manhã, faz com que o dia todo seja muito melhor.

E isso, refletido nos relacionamentos é extremamente positivo. Não precisamos de um Sr. Grey para pendurar um quadro ou arrumar uma fechadura. Para isso existem profissionais habilitados. Também não se pode pretender que o homem com quem se convive se acinzente para que todas as noites sejam absolutamente calientes. Todos temos limitações. Mas me diga de verdade: você se lembra porque se apaixonou? Porque ficou ao lado da pessoa com quem está? O hábito de esquecer as benesses que uniram pessoas é a segunda maior causa de divórcios e separações. A maior delas é esquecer-se de si mesmo. Abandonar-se. Não importa se este abandono é do ponto de vista físico ou emocional. Não existem novos centros de moralidade humana, só uma aplicação deficiente do poder que cada um julga possuir. Sexo bom é aquele que contém duas almas inteiras. Não adianta enterrar sonhos na areia. Os desejos que não são expressos em palavras ou gestos se perdem no vento.

Porque viver em eterna agonia, se é possível mudar a história?

Não é um livro cinza que vai mudar sua trajetória. O diálogo ainda é a melhor maneira de enfrentar um relacionamento. Os seus desejos não são pecados, são inibições com as quais você pode aprender a conviver. E dividi-los é uma decisão que só cabe a você. Todas as direções são possíveis para quem quer caminhar, para quem vê um destino. O céu será sempre das cores que você pintar.

Eu sei que existem coisas difíceis de dizer, de expressar, mas a solidão e o abandono não são um estado de espírito, são uma escolha.
Do passado devemos lembrar apenas dos dias de sol.

Confesso que, às vezes, eu sinto vertigem dos meus saltos altos. Mas eu não acredito em finais. Eu só acredito em novos começos.



Publicado em fevereiro de 2013, na Revista da OAB de Santo André (ano 03, no. 11)



[1] Círculo do Livro foi uma editora brasileira estabelecida em março de 1973 através de um acordo firmado entre o Grupo Abril e a editora alemã Bertelsmann. Vendia livros por um "sistema de clube", onde a pessoa era indicada por algum sócio e, a partir disso, recebia uma revista quinzenal com dezenas de títulos a serem escolhidos.
[2] http://www.bizrevolution.com.br/bizrevolution/2012/10/porque-as-mulheres-amam-christian-grey.html, em 13/02/13.
[3] Segundo Nelson Nery Junior, cláusulas abusivas "são aquelas notoriamente desfavoráveis à parte mais fraca na relação contratual de consumo. São sinônimas de cláusulas abusivas as expressões cláusulas opressivas, onerosas, vexatórias ou, ainda, excessivas." In Nery Junior, Nelson. Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997
[4] A expressão cláusula leonina tem sua origem numa fábula de Esopo: uma vaca, uma cabra e uma ovelha haviam feito um acordo com um leão e caçaram um cervo. Partindo-o em quatro partes, e querendo cada um levar a sua, disse o leão: a primeira parte é minha, pois é meu direito como leão; a segunda me pertence porque sou mais forte que vós; a terceira também levo porque trabalhei mais que todos; e quem tocar a quarta me terá como inimigo, de modo que tomou todo o cervo para si. 
[5] Rizzato Nunes, O princípio da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência, p. 20.
[6] Constituição Federal, art. 1º, III.
[7] Jurisprudência dos valores é a interpretação da lei segundo os valores por ela tutelados. A vigência do direito positivo não é negada, ao contrário, é confirmada, mas suas palavras ganham vida, ganham luz, não são mais simples palavras, são valores. 

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