terça-feira, 26 de março de 2013

Fivela




Este poderia ser mais um dia comum se eu não tivesse que comprar sapatos novos para o casamento do João. Essa estória de ser padrinho é uma chatice... Mas o João me agüenta há tantos anos que eu não tive como dizer não. Ele convidou com toda a pompa e circunstância e eu fiquei naquele beco sem saída que os amigos mais queridos costumam nos colocar sem a menor cerimônia. “Vai ser uma honra!”- me ouvi dizer. E agora eu estou aqui: na fila infindável deste estacionamento no shopping que a minha ficante do mês disse para eu vir comprar um par de sapatos novos “porque com esses aí, você não sai comigo!”. Então veja a minha situação: aceitei um convite que eu não queria e agora estou nessa fila para comprar algo que não preciso, a mando de alguém que nem conheço direito... mas que faz uma ginástica louca por cima de mim, depois que eu deixo o quarto à meia luz. No final das contas eu acho que vale a pena. Os corredores do tal shopping estão iluminados demais para a fotofobia que me acompanha nos últimos meses. Acho que é a proximidade dos cinqüenta anos. Meio século! Mas eu ainda me sinto com o espírito de um cara de 25. Se bem que, de vez em quando, preciso dar um vinhozinho a mais para que a ficante durma mais cedo, e me deixar em paz...

Mas não é só a luz. Tudo me irrita. A música mal escolhida, as mulheres com seus carrinhos de bebês e suas babás, a confusão de perfumes importados da Europa e do Paraguai, as vitrines... Achei a loja... Unissex...  credo! Que termo antigo... ai, meus 50 chegando... Entro. Uma vendedora muito sorridente vem ao meu encontro e eu lhe digo, na machadada: sapato preto, de amarrar, discreto, chique, para ser padrinho de casamento, número 44. Ela se move através de uma escadinha pela qual eu jamais caminharia. Me sento em um canto da loja e olho o relógio. Se o casamento não fosse amanhã à noite, eu certamente encontraria alguma coisa melhor para fazer com o meu tempo. E com o meu dinheiro. Olho o relógio de novo. Já havia se passado 2 minutos e a vendedora de sorriso fácil ainda não tinha voltado! Alguém me oferece uma xícara de café, que recuso, com um sorriso forçado. Relógio. Tic-tac e ela não volta. Vou contar até 5 mil, se ela não voltar, me levanto e vou embora. E a ficante vai ter que se contentar com aquele sapato preto que está perdido lá no meu armário. Na área feminina, alguém chega. Não vejo bem quem, porque existe uma estante vazada lotada de bolsas dividindo as alas. A vendedora-toda-sorrisos finalmente volta, com um sorriso e 29 caixas de sapatos. Abre todas e quer guiar meus pés para dentro dos sapatos. Mãos leves. Até que gostei. Fico em pé para apreciar o crocodilo preto, mas o espelho foi feito para baixinhos. A vendedora-cheia-de-dentes indica que o espelho maior fica na área feminina e abre caminho para mim, que a acompanho, dando a volta na estante vazada de bolsas. E quando faço a curva, o mundo se entorna um pouco. A mulher que chegara estava agora provando sapatos. Zilhões de caixas de sapatos abertos e eu só podia ver o decote dela que se abria um pouco enquanto ela tocava o couro do sapato que lhe calçava os pés. Disfarcei. Olhei para o espelho grande e, de repente, quis provar todos os outros pares de sapato que a vendedora havia trazido. Para me acomodar melhor, ela trouxe as caixas todas para o lado do espelho grande, sempre sorrindo. Sentei. Ato contínuo, a mulher se levantou e desfilou até o espelho para ver melhor os sapatos que estava provando. Eu não conseguia fechar a boca. O peito dos pés dela. A pele branca. Os saltos altos que faziam a cabeleira loira vir de mais longe, de mais alto. E eu, califa, sentado ali, vendo tudo. Ela voltou ao sofá em que estava e foi trocando os sapatos. Um a um. Um roxo. Um chocolate, como disse a vendedora que lhe atendia. Um creminho. Outro preto. Até que a vendedora abriu uma caixa que parecia especial. A mulher sorriu e olhou nos olhos da vendedora, como se dissesse: é esse. Eu quase caio do meu sofá, tentando, em vão, ver o que tinha dentro da caixa. Pescoço esticado. Só a minha vendedora percebeu. Eu já estava com o mesmo par de sapatos há 5 minutos e ainda não tinha levantado para olhar no espelho grande. Fiquei ali, com a bunda colada no veludo bordô-discreto do sofá, olhando para a mulher que provava sapatos. A vendedora (dela) fez um suspensezinho. Foi tirando devagar da caixa o tal par de sapatos. Devagar. Bem devagar. A mulher sorria e ajeitava os fios loiros dos cabelos longos. E eu estava por um triz para saltar sobre a vendedora (dela) e ver logo de uma vez o que tinha dentro da caixa.

Tcharam!

O que saiu de lá não era um sapato. Era uma sandália! E tinha uns fios pretos e umas pedrinhas brilhantes. Eu jamais saberia como ajudar uma mulher a colocar aquilo. Mas a mulher loira sorria, feliz. A vendedora desnudou seus pés, de unhas perfeitas e bem feitas, apoiou-os sobre seus joelhos e colocou uma, depois outra sandália. Meu coração começou a bater. Ia sair pela boca. A mulher, agora olhando os próprios pés, parecia sorrir enquanto seu decote abria para mim. Minha gravata apertada e a escola de samba dentro do meu peito. E a maldita vendedora (dela) na frente. Eu não conseguia ver como tinha ficado. Mas sabia que a qualquer momento ela ia se levantar e eu, aqui de baixo, ia poder ver o início da cachoeira que eram os seus cabelos lá no alto daquele salto. Não sei bem como, mas de um momento para outro, a mulher tinha se transformado em saltos, cabelos e decote. Mistura perigosa para quem só queria comprar um par de sapatos novos para o casamento do João... e o tsunami começou. Primeiro a vendedora (dela) saiu da frente. Depois, ela começou a se levantar do sofá que tinha a mesma cor do batom dela. Devagar. Bem devagar. Só para me maltratar. Parecia que ela se levantava um milímetro por hora e meu coração ia sair pela boca. Ia sim. Minha gravata ia explodir. Os botões da minha camisa iam voar pela loja e a mulher veria minha identidade secreta de super-homem. Mais um milímetro e ela estaria ereta, diante do espelho grande. E sorria. Sorria, com aquela boca de sofá de veludo, para ela mesma diante do espelho. As tiras da sandália davam voltas pelos pés e pelas pernas dela e subiam. E eu subia junto com as tiras, começando pelos dedos, passando pelo peito perfeito dos pés dela, pelo tornozelo, e subindo, junto, para saber até onde iam as tiras.

- Você pode ajeitar a fivela para mim?

Ela disse essa pequena frase com a voz meio rouca e eu me joguei adiante da vendedora (dela) e ajeitei a fivela de pedrinhas brilhantes que segurava os fios que subiam perna esquerda acima e iam dar em algum lugar desconhecido que eu gostaria muito sim de conhecer, obrigada. Ajeitei a fivelinha do outro pé também. E, depois, olhei para cima. Lá para o alto, de onde ela me sorria, agradecida.

Me apertava o dedinho direito o maldito crocodilo preto que comprei para o casamento. A sacristia era pequena e abafada. E a noiva do João nunca que chegava. Os outros padrinhos (porque tantos?) também estavam um pouco impacientes. Já tinham servido aguinha, cafezinho e nadinha da noiva. Alguém começou a brincar com o João e ele não gostou. Sua noiva era séria. Não ia deixá-lo no altar. De repente alguém entrou esbaforido, dizendo que a noiva havia chegado. Cada um pegou seu par e eu fui junto para a porta da igreja, para o cortejo, para encontrar a prima do João que ia ficar no altar comigo. E quando eu vi, era ela. A mulher da sandália com fivela. Não a prima, a noiva. O João estava casando com o meu par de pés preferido. O mundo, definitivamente, não é justo.


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