E o não é que o Papa veio mesmo?
Chegou e não perdeu tempo... já de cara, logo depois das palavras de boas
vindas do Presidente da República, se
manifestou sobre o assunto do momento: o dogma católico “não matarás”,
indicando, ainda que subliminarmente, a posição da Igreja acerca da eutanásia,
coisa que ninguém comentou. E para morrer – todo mundo sabe – é preciso estar
vivo.
E esse assunto está em voga no Brasil, depois que foi votada com adesão
massiva dos nossos congressistas, à Lei 11.105/05 (lei de biossegurança), que,
logo após, o Presidente tratou de sancionar.
Se a história tivesse parado por aí, o discurso de proteção à vida (que
implica na reprimenda ao Brasil na pesquisa com células tronco, clonagem
terapêutica, aborto, reprodução Humana Assistida, entre outros) feito pelo Papa
talvez não tivesse tanto peso na mídia, como teve.
Mas, em decorrência da tentativa de dar caráter de inconstitucionalidade
à lei de biossegurança, promovida pelo então
Procurador-Geral da República, Cláudio Fonteles, a coisa tomou outro
caminho.
No Brasil sabemos quando alguém morre, pois existem dispositivos
normativos indicando a morte cerebral, o que, aliás, facilita a retirada de
órgãos, através da doação na conformidade da lei, que resulta na possibilidade
de vida para muitos enfermos e, na grande maioria dos casos, em uma real
melhora em sua qualidade de vida.
Mas o que se pretende mesmo, é saber quando a vida começa. Se a
inconstitucionalidade arguida pelo procurador se cristalizar, o Brasil passa a
pensar legalmente da mesma forma que a Igreja Católica, que defende o início da
vida na fecundação, ou seja, no encontro dos gametas e no surgimento de um
inédito código genético, mesmo que este “corpo” que detém tal DNA não tenha
meios efetivos de se desenvolver, nascer e ser titular de direitos e
obrigações, conforme indica o art. 2º de nosso Código Civil.
Se a postura for esta, estarão impedidas as pesquisas com relação às
células tronco embrionárias, ou seja, células indiferenciadas que são retiradas
de embriões inviáveis para uma gravidez, ou que estejam congelados há mais de 3
anos.
E por uma simples questão de lógica, estes embriões terão um destino
certo: o lixo.
E pelo que parece, a Igreja, bem como o procurador que aponta a
inconstitucionalidade da lei de biossegurança, entendem que o lixo é um destino
zilhões de vezes mais ético que a utilização desses mesmos embriões para
pesquisas que podem, num futuro muito próximo, livrar os enfermos de acidentes
vasculares cerebrais, diabetes, Mal de Parkinson, Alzheimer, entre outras tantas possibilidades.
O que me aflige não é a postura de cada Chefe de Estado, mas sim os
desdobramentos que estas mesmas posturas podem provocar.
Fala-se tanto em proteção à vida, fala-se mais ainda sobre qual o momento
em que ela começa, mas ninguém se preocupou em conceituar vida. Pelo menos, não
no campo jurídico. Certo está que este não deve ser o mote da lei. Todavia,
seria uma ferramenta interessante que auxiliaria nossos legisladores na defesa
de pessoas que, reféns de posturas que impedem o desenvolvimento tecnológico,
pudessem brigar um pouco mais, ou não correr o risco de ver a ciência
amordaçada.
Observe, também, que a realização de pesquisas em células tronco
embrionárias somente podem ser realizadas com
a autorização dos genitores.
Temos, então, que tão importante quanto a pesquisa é o fato de que o
Brasil, através da lei 11.105/05, extremamente altruísta no que tange à
pesquisa com células tronco embrionárias, cristalizou o direito de escolha. E talvez esse fato também afronte as perspectivas
da Igreja Católica, uma vez que ela defende com unhas e dentes a proibição do
aborto ou, em outras palavras: retira de seus fiéis a possibilidade do direito
de escolha.
Possibilitar o aborto, a reprodução humana assistida, a pesquisa em
células tronco embrionárias no Brasil, entre outras tantas tecnologias que vão
surgindo, significa dar aos cidadãos o direito de escolher sobre seu futuro.
Significa, também, tirar da marginalização as mulheres sem recursos financeiros
que correm risco de vida ao buscar a realização do abortamento em clínicas de
reputação duvidosa; significa dar alento e a possibilidade de se ter um filho
para aquele casal com problemas de fertilidade, significa dar esperança para
quem sofre com alguma enfermidade, e vê a medicina com mãos atadas.
A Igreja fala muito acerca da proteção da vida e isso é louvável. Mas só
devemos nos preocupar com uma expectativa? Com uma promessa de vida? O que tem
o Papa para dizer às pessoas que já estão aqui e que, em decorrência de um
fator patológico ou de um trauma, estão impedidas de ver seus sonhos
realizados?
E mais, devemos usar dois pesos e duas medidas para analisar as posturas
da Igreja? Ora, na bandeira contra o aborto o Papa indica que seu objetivo é a
proteção à vida. Então, quando a Igreja condena o uso de preservativos
poderíamos entender que ela não se
preocupa com a AIDS? Alguém vai ter que fazer essa lição de casa...
Agora, se pensarmos que o embrião guarda a riqueza do que será sua vida -
se vier a nascer - ou seja, o DNA, possivelmente em alguns anos também estarão
impedidas as pesquisas na carga genética dos gametas, já que, estes sim, são
potenciais condutores da expectativa de um novo ser.
Os teólogos costuma dizer que o dogma “não matarás” tem uma ligação
íntima com a questão da alma, o que significa que, com a fecundação, uma nova
alma se formou e, realizando-se pesquisas em embriões, esta mesma alma se
perderia. O que me incomoda é pensar que o lixo é um lugar melhor para essa
alma que o implemento de qualidade de vida dos enfermos que poderão ser
amparados pelo resultado das pesquisas.
Essa aritmética é muito infeliz.
Se a ciência e a religião quase nunca andaram de mãos dadas, folgo em
saber que ainda vivemos em um país que prevê a separação dos poderes e entre
eles não se encontra um destinado à religião. A religião é uma escolha de foro
íntimo e assim deve ser mantida. Não pode qualquer delas, inclusive a Católica,
pretender mudanças na legislação.
Aliás, vale lembrar que a convivência e tolerância entre as religiões são
objeto de matéria constitucional.
O que é mais coerente é deixar que as pessoas escolham o destino do
produto da junção de seu DNA. Aliás, tal postura não impede que os católicos não autorizem a pesquisa sobre
seus embriões. Mas, se um católico chegou ao ponto de tomar esta decisão,
certamente está em maus lençóis, pois a Igreja Católica também não vê com bons
olhos as técnicas de reprodução humana assistida (meio pelo qual os embriões
são obtidos).
Se o STF confirmar a constitucionalidade da norma que trata de
biossegurança, evitará que uma “multidão” de embriões sejam destinados ao lixo,
e também estará consagrando o direito de escolha de pessoas que não comungam da
fé católica, jogando um pouco de luz sobre a momentânea névoa do obscurantismo
que pairou sobre o Brasil.
As pesquisas sobre as células tronco embrionárias não pretendem reduzir
ao sentido biológico ou genético o que entendemos por vida, mas sim, traçar uma
nova possibilidade de futuro para os nossos doentes e dar a cada um de nós a
possibilidade de escolher qual será o destino de nosso código genético. E se
tivermos tal possibilidade, porque não fazê-lo?
Nenhuma das pessoas envolvidas nas pesquisas com células tronco
embrionárias está dizendo que o embrião não é vida, mas sim que o resultado das
pesquisas certamente vai ajudar as pessoas que já estão aqui, entre nós, neste
momento.
E para minha sorte, os fósforos da Inquisição não podem mais ser usados.
(artigo publicado em fevereiro de 2003)
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