quarta-feira, 27 de março de 2013

O outro dia




A coragem havia lhe passado a perna. Sem entender bem o que fazia, ele a convidou para jantar. Seria alguma coisa muito tranqüila – ele repetia para si mesmo, mentalmente – enquanto colocava o fone de volta no gancho e dava uma espiadela no calendário de mesa, contando os dias que faltavam para o encontro. E, de agora, até o jantar ele tinha 5 dias, 10 horas e segundos demais para saber o que ia falar para ela. Eram muitos anos de história e três de um silêncio que rompeu o peito e roeu as entranhas do homem respeitável que ele acreditava ser. Os dias iam enquanto ele fazia não pensar nos riscos que corria e analisava no espelho as rugas que chegavam na espreita de cada tic-tac. O trabalho lhe servia de distração. Ele parecia produzir cada vez mais naquele hiato de relógio. Às vezes, a secretária o pegava sorrindo e olhando para o nada. Um comentário ou outro durante a vídeo-conferência: ele parecia menos cansado, mas acessível. O tom de voz parecia ter mudado também. As pessoas comentavam, mas ninguém sabia o que ia dentro dele. Agora só faltavam algumas horas. Quando o dia amanhecesse ele seguiria cego para o endereço que estava manuscrito na agenda, sob o nome Mr. Gun. Porque ela era uma arma que sempre aponta. Ou talvez porque ela seja mesmo explosiva. Ou ainda porque ele sempre se encontrava no limiar entre a lucidez e a loucura quando ela está por perto. Bem... perto ela sempre esteve. Ele olhava para os lados e a via em todos os lugares. Mesmo durante aqueles anos de silêncio, se ele fechasse os olhos – uma piscadinha que fosse – a voz dela inundava tudo. Uma enchente de lembranças do que poderia ter sido, se ele tivesse corrido atrás dela quando ela passou pelo batente da porta e o deixou na escuridão. Mas a escuridão acaba sempre sendo previsível. Você acende uma fogueira aqui. Instala uma lâmpada ali e pronto. A vida na escuridão é previsível, e, justamente por isso, é mais segura. Se clareia somente o que se quer ver. E quem pode se acostumar com pouco, chama isso de felicidade. Mesmo que essa felicidade não traga sequer um traço de vermelho. Ele passou a mão pela testa quando lembrou da maneira como ela lhe beijava a boca. As mãos também estavam úmidas. Ele sorriu, olhou para o rádio-relógio na beira da cama e recontou as horas. Dezenove horas e caindo. Os números verdes derretendo. Tic-tac eletrônico. Gosto metálico na boca. Ansiedade controlada. Ele vigiando os números das horas ao invés de contar carneiros. Onde estava aquela calma que ele costumava sentir em todos os dias em que ela não estava por perto? Talvez ela esperasse que ele fosse menos gentil. Talvez. Cerrou os dentes quando viu os números virarem o primeiro minuto do outro dia. Os lençóis lhe trancavam os pensamentos. Agora o encontro se aproximava e ele já não sabia mais se tinha feito a coisa certa. Talvez tivesse se aproximando demais do perigo. E a cada segundo que passava, sua vida ia virando um pouco mais de pernas para o ar. Ela tinha esse poder. Transformar tudo. Arrastar. Um tsunami. Desde sempre ela era assim. Passava e tingia tudo de um vermelho escarlate que ninguém podia conter. Ela passava e alguém contava os sobreviventes. E depois era só comemorar. Só quem chegasse tão perto quanto ele chegou é que podia comemorar. Assim, olhando de lado para os números verdes do relógio ele parecia desconfiar que algo estava conspirando contra ele. Ainda eram uma e meia da manhã e faltavam muitas horas para o sol dar as caras em sua janela. Faltavam algumas horas para ele se preparar de vez para o encontro. Para ele caminhar no meio do céu que se encheria de pontinhos vermelhos luminosos porque ela estaria por perto. De verdade. Quatro horas da manhã e ele estava com os olhos secos de tão abertos. Arreganhados. Outdoor. Os números do relógio dançavam a sua frente, debochando. Ele precisaria de alguma proteção contra aquela mulher que ele, novamente, convidava para entrar em sua vida, destruindo tudo? Talvez fosse melhor não ir. Ele já havia feito isso antes. Marcara e simplesmente não aparecera. Ele tinha certeza que ela ria do medo dele. Não ir é mais seguro que ir. Ser um rato medroso é mais fácil que correr o risco de ter que olhar nos olhos castanhos dela e ver o paraíso refletido. Não ir é navegar por mares calmos. Conhecidos. Aborrecidos. É estar longe de tudo o que sempre buscou na vida. É estar longe da risada mole que ela dá, enquanto ele faz um comentário engraçado. Essa coisa de ter o mesmo senso de humor é perigosa. Quando duas pessoas não precisam dizer nada para rir... isso é muito perigoso, porque todo o resto parece não fazer sentido. E ainda tem o sorriso dela. Que brilha. E as palavras que ela fala. As letras saem da boca dela e vão tomando forma. Se juntando, até que viram uma imagem que se sobrepõe entre eles e aproxima. Ele a trataria bem se pudesse. Agora o verde dos números o confundia. Acendeu o abajur para poder ler as horas. Pôs os óculos. Quase seis. E ele não dormiu. Ou achava que não tivesse dormido. O corpo lhe doía um pouco. Talvez pela posição tesa, de lado, na cama, fixando os números do relógio. Em alguns minutos ia soar a música da rádio que ele gostava de ouvir. Ele se levantaria, tomaria seu banho, o café da manhã, a roupa no closet, as chaves do carro, a maleta, o elevador, o caminho até a empresa, o sorriso gélido da secretária. Os papéis... Mas o calendário sobre a mesa, acima de qualquer dúvida lancinante, lhe indica que o dia é este mesmo. Não é alucinação. Consulta o relógio de pulso e reconta as horas que, nesta altura, passa a ser a informação mais importante do dia. Ainda lhe restavam algumas horas para ele escolher por um esconderijo. Como havia feito das outras vezes em que ficara debaixo da mesa ao invés de correr ao encontro dela. Todavia, hoje parecia diferente. Ele sentia algo diferente. Uma coragem que desconhecia. E ainda tinha o jeito que ela apóia o queixo nas mãos, com um sorriso meio de lado e olhando dentro dos olhos dele. Ela mergulhava nele pulando dentro dos olhos dele. Perscrutando tudo. Descobrindo todos os segredos. Remexendo suas entranhas e as arrancando para o lado de fora, segurando-as na mão direta que se alça para o céu vermelho escarlate do planeta em que ela vive. No almoço com os clientes ele não conseguiu fazer nada a não ser mudar a comida de lugar no prato. Ele estava ali, naquele restaurante, mas também voava pelas ruas da cidade. Quase um super-homem. E, enquanto isso, o mundo seguia seu curso. Mais trabalho na volta para a empresa. A secretária veio se despedir, o que o fez supor que já eram mais de seis da tarde. Olhou o relógio de pulso: tinha menos de uma hora para enfrentar o trânsito, chegar em casa, tomar um banho e estar no restaurante. Ele chegou antes. Havia reservado uma mesa perto da janela de vidros grandes que dava para o pátio onde os manobristas manobravam. Viu quando ela desceu de um carro preto. Viu a boca vermelha dela. As pernas longas que se pronunciavam com os sapatos de saltos muito finos e que eram um prenúncio do céu de sorte que se descortinava. Ela sorriu para o manobrista. Levou o cigarro à boca vermelha antes de apagá-lo. Ajeitou o cabelo. E aquilo era uma visão para ele. Ela olhou para a porta do restaurante. Ele escondido atrás da janela de vidro. Ela deu o primeiro passo com as pernas longas e a distância que os separava começou a diminuir. O coração dele aos pulos. Aos saltos. Ornamentais. Antes de cair naquela piscina de emoções que era ela, que agora caminhava em direção ao maitre, derrubando as paredes por onde passava, fazendo desabrochar os botões, petardos de São João, a terceira guerra mundial. Ela caminhava e todo o resto era passado. Agora ele já podia ouvir a música dos saltos dela. Allegro ma non troppo. Ela sempre allegro. Ele tentando o non troppo. Na cabeça dele uma canção se insinuava. Ele ouvia e ninguém mais podia ouvir. Ela olhava na direção dele. Match: encontrou os olhos castanhos dela. Super bonder: jamais conseguiria descolar os olhos dela. Nem se o mundo acabasse ele conseguiria descolar os olhos dela. Porque ela era o seu passado e também era o seu futuro. Ela era um mundo todo de incertezas. De sangue correndo nas veias. De prédios que se derretem. De abdução. Sim, ele estava sendo abduzido. Agora ele entendia. Abdução que ele havia programado e agora não podia mais controlar com seus dedos de homem de negócios e decisões. A vida lhe seria sugada através de seus olhos onde ela mergulhava, e seria transformada em nada. Como tudo que estava à volta dela e que agora ia empalidecendo, desmatizando, até perder a cor e a forma por completo. Ela andava em direção a ele e ele via os quadris dela que balançavam sob a saia que esconde mistérios. Ele detetive e ela segredos eternos. E os sapatos que tocavam o ritmo que balançava os quadris dela. As mãos longas que seguravam a bolsa onde ela esconde os venenos e os antídotos. E a agenda de telefones. As unhas vermelhas. Cor de sangue. Cor que o sangue dele voltou a ter, depois que ele abandonou o mundo perfeito dele e veio para esse restaurante que agora desaba, pedra por pedra, enquanto ela passa entre as mesas e se aproxima dele e da janela de vidro que dá para jardim onde os manobristas plantam carros. Mobilidade. Ele gostaria de conseguir mover um músculo. Nem que fosse para fechar a própria boca, que desabara ao vê-la. Um único desejo para o gênio da lâmpada – se ele se desse ao trabalho de prestar socorro naquela hora: uma redoma. Algo que servisse de proteção contra aquela mulher que caminhava. E vinha em direção a ele com um sorriso na boca vermelha como as unhas que ele gostaria que estivessem cravadas em suas costas, desenhando um veludo cotelê tcheco ou alemão. Uma redoma poderosa que não deixasse que a imagem dela ultrapassasse. Um lugar onde ele pudesse respirar. Porque a garganta se fecha? Ele não confia mais. Agora era como se ele estivesse na estaca zero. Sem proteção contra ela que vinha caminhando em sua direção e balançando os quadris daquele jeito que hipnotiza. Tic-tac. Não são as horas. É uma bomba relógio prestes a iluminar o pouco de lucidez que restava nele. Os cabelos dela. Longos. Ele se penduraria nos cabelos longos dela. Se amarraria com os cabelos longos dela. Os cabelos que balançam enquanto ela caminha balançando os quadris no compasso da música do sapato sobre a madeira do piso que vai se desfazendo e apagando as pegadas dela. Uma chance. Ele gostaria de ter uma única chance de fazer qualquer coisa. Mas as palavras se engarrafaram em sua garganta seca. Os músculos enrijeceram. Os olhos vidrados. Pensamentos congelados na frigideira de idéias que era a mente dele naqueles segundos de tortura larga. Ele manteria a pose se soubesse qual era a adequada para aquele momento de glória. Ele falaria alguma coisa inteligente. Ela sempre gostou de homens inteligentes. Mas ela está parada na frente dele, com aquele sorriso meio de lado. Ele tenta dizer palavra, mas ela dispara um boa noite e as cadeiras voam. Venta muito dentro deste restaurante. A próxima respiração. A próxima palavra. O próximo arfar. O futuro é vermelho. E não pertence a ninguém.  




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