“Quando eu morrer,
não quero choro, nem vela,
quero uma fita amarela,
gravada com o nome dela (...)”.
Este samba, tradicional no Brasil, denota que, à época de sua composição,
não havia - pelo menos em primeiro plano - uma preocupação tão exacerbada com a
forma como a vida ia acabar... desde que a fita amarela tivesse o nome dela.
Nos dias de hoje, cada vez mais afastados do romantismo do samba, cumpre
a cada um de nós se posicionar sobre como queremos que a (nossa) vida termine.
A viagem filosófica que antes se fazia, a partir do fato inexorável da
única certeza que temos na vida, passa a ter outros contornos quando o samba dá
lugar a conceitos científicos que passaram a fazer parte da vida cotidiana do
homem médio.
Se antes, a única certeza da vida era a morte, hoje esta certeza vem
acompanhada de outros condimentos, às vezes não tão digeríveis. E acabamos por
perceber que a preocupação do homem está muito mais ligada à forma de como a
vida vai terminar, do que em buscar um verdadeiro elixir da imortalidade, posto
que passamos a conviver com aquelas moderníssimas máquinas maravilhosas e os
médicos incríveis que a manipulam e, a
cada dia, alguém recebe sua contagem regressiva.
Se, de um lado, a medicina se desenvolveu para descobrir e curar muitas
doenças fatais de antigamente, também
se desenvolveu para identificar patologias antes desconhecidas e ter que
conviver com a impotência de não saber como curá-las.
Mas a medicina não se faz refém. Para poder fugir por completo de um
possível e equivocado julgamento maniqueísta, ainda resta a esta ciência, o
dever de cuidar dos seus, ou seja, posicionar os médicos e outros profissionais
de saúde, que, por escolha, convivem com a luta de seus pacientes.
Então, a coisa toda toma outra dimensão. A descoberta da doença, sua
terapia e a tentativa – às vezes infrutífera – de se alcançar a cura encontra
outros caminhos para trilhar e, de repente, começa a tomar vulto o que vem se
chamando de morte digna.
Uma análise mais rasa poderia dizer: morte digna, ainda que sua vida não
tivesse sido tão brilhante?
QUERO MORRER
DORMINDO...
Quantas e quantas vezes já não ouvimos esta expressão? É a forma
coloquial do brasileiro dizer que pretende para si uma morte doce. E morte doce
é, justamente, uma das formas de se traduzir do grego a expressão EUTANÁSIA.
Mas, na atualidade, a “morte doce” deixou de ser compreendida como algo
que virá - mas que venha devagar, sem alarde, por favor – para ser compreendida
como qualquer meio positivo ou negativo que abrevie a vida de alguém que sofra
de uma enfermidade incurável.
Isso, então, nos reporta a uma das classificações que se fez acerca da
eutanásia: ativa ou passiva. Se na eutanásia ativa, deve existir uma ação médica que, a pedido do paciente
ou à sua revelia, vai finalizar um sofrimento que a doença lhe impõe; na
eutanásia passiva temos, justamente, uma omissão
médica, onde não existe a aplicação de uma terapia ou de um determinado
medicamento que prolongará a vida de seu paciente.
Mas a morte doce ainda pode ter outros contornos: a mistanásia que está ligada à morte decorrente de sistemas e estruturas
aplicadas à sociedade (fome, tortura, falta de acesso aos serviços de saúde,
falta de acesso a medicamentos, modo de se adquirir doenças em decorrência de
falta de educação, falta de saneamento básico, entre outras). A mistanásia,
dentro de nossa compreensão, está sempre ligada a atos que o Poder Público
deveria realizar e não realiza. Neste caso, a preocupação dos médicos, e da
entidade que os representa (CFM), com a responsabilidade civil e criminal em
decorrência da eutanásia (aqui compreendida como gênero), deixa de existir ou
fica minorada, para indicar o Poder Público e as figuras que o compõe, como os
verdadeiros responsáveis pelos destinos dos brasileiros e estrangeiros
residentes no Brasil (artigo 5º da Constituição Federal). E se o Poder Público,
através de cada um de seus braços, não pode ou não consegue garantir ao menos saúde, que é um seu dever (artigo 6º
cumulado com artigo 225 da Constituição Federal), que segurança, então, poderá
dar aos seus?
Outro contorno é a DISTANÁSIA,
tema já muito estudado e debatido pelo Padre Leo Pessini, brilhante
representante brasileiro junto aos mais renomados órgãos que tratam de Bioética
no mundo. O Padre Leo, como é carinhosamente conhecido, já muito publicou
acerca deste tipo de eutanásia que, modicamente, podemos compreender como a
morte ocorrida após a utilização de todos os meios e tecnologias para o
prolongamento da vida, mesmo que esta vida não tenha qualquer qualidade, mesmo
que não exista melhora efetiva para
o paciente.
Em nossa opinião, e com a devida permissão que nos dá o direito de
filosofar, entendemos que a incapacidade humana de se desprender daqueles que
ama também pode chegar às beiras do egoísmo, fazendo com que os pacientes
terminais nunca terminem sua missão, posto que presos a uma vida interminável,
sustentada pelos mais modernos aparelhos e pelos mais poderosos remédios
combatentes da dor.
Outros tantos tipos de eutanásia poderiam ser aqui aventados, mas vamos
finalizar com a ORTOTANÁSIA, que vem
a ser o que temos aprendido como morte
digna. E morrer dignamente, ou morrer bem, significa morrer na própria
cama, rodeado pelos familiares e pelos amigos. Há um abismo enorme entre curar
e cuidar e, tanto os médicos e profissionais de saúde, quanto os próprios
pacientes e seus familiares, passam a entender este hiato de uma forma mais
contundente, posto que compreendem a impossibilidade da retomada de uma vida
tida como normal, e vislumbram a possibilidade efetiva do próprio paciente
escolher. O que se questiona, aqui, é que se esta escolha não for feita
diretamente pelo paciente, ela deve ser validada? E a qual será a
responsabilidade do profissional de saúde, posto que é ele quem agirá, ainda
que positiva ou negativamente? A Bioética se preocupa com o direito de escolha,
conforme presenciamos nas brilhantes batalhas ideológicas tratadas pelo
Professor da USP, Dr. Marco Segre, médico e renomado bioeticista, mas este
mesmo direito de escolha deve ser estendido aos familiares de um paciente que
não consegue manifestar sua vontade? E mais, se o paciente terminal ou o
paciente que se sustenta por aparelhos não possui recursos financeiros
suficientes, qual será a efetiva responsabilidade do Poder Público neste
emaranhado de fios, tubos e respiradores?
A CIDADE
MARAVILHOSA E A TERRA DA GAROA
São conhecidos casos de eutanásia que já ocorreram no Brasil. No Rio de
Janeiro o auxiliar de enfermagem E. I. Guimarães estaria envolvido em, pelo
menos, 153 casos de eutanásia, tendo confessado apenas 4. O tal auxiliar já foi
condenado a 76 anos de prisão por aplicar cloreto e potássio ou por realizar o
desligamento de aparelhos de pacientes
que ele entendia como terminais, sustentando a tese de que pratica os atos por
compaixão e piedade. Em São
Paulo , um médico (C. A. C. Cotti) confessou também 4 eutanásias,
quando aplicava substâncias químicas ou desligava os aparelhos que sustentavam
a vida de pacientes terminais. Relata, inclusive, o médico, que um dos casos
teria sido realizado após efetivo pedido do procedimento pela família do
enfermo.
Ainda em terras paulistas, muito se falou sobre o caso que ficou
conhecido como O Menino de Franca
que, portador de uma doença degenerativa progressiva, aos 4 anos de idade,
“causou” litígio entre seus pais, posto que a mãe queria que todos os meios
disponíveis fossem utilizados para que a vida da criança fosse mantida, já que
não existe cura para tal patologia e, o pai, contrariamente, buscava
alternativas para a realização da ortotanásia. Chegou, inclusive o pai,
conforme noticiou-se em todos os meios de comunicação, a pensar em intentar
ação judicial para a autorização de realização da eutanásia. O caso perdeu
notoriedade em razão do pai ter definitivamente desistido da idéia de provocar
o judiciário com tamanha contenda. E o judiciário perdeu a preciosa oportunidade
de traduzir, através dos nossos tribunais, a postura que o Brasil tem para com
este tema. Deixou, desta forma, a tarefa para outros. E o Conselho Federal de
medicina (CFM), como veremos mais adiante, não se furtou a este trabalho.
E NA TERRA DO
TIO SAM...
O primeiro caso de eutanásia que se deu destaque nos Estados Unidos
ocorreu em 1.976, com a paciente Karen Ann Quinlan, que foi seguido por Baby
John, Claire Corroy, Nancy Jobes, entre outros. Mas, sem dúvida, o que mais
recebeu atenção da mídia mundial foi o de Terri Schiavo, em 2.005. Diz-se que
Terri passava por momentos difíceis com o final de fato de seu casamento e que
estaria aplacada por problemas com bulimia, o que poderia ter causado uma
parada cardíaca, em 1.990, e, em decorrência de falta de fluxo sanguíneo, teve
uma lesão cerebral irreparável. Seu marido, Michael Schiavo, desde a
constatação de seu estado, entrou com 3 pedidos de retirada de sua sonda de
alimentação e teve seus 3 pedidos deferidos, sendo que os 2 primeiros foram
revertidos pela família de Terri e a sonda foi recolocada. Entretanto, no
terceiro pedido, a sonda foi retirada definitivamente e, em 31 de março de
2.005, Terri faleceu... de fome. O marido ainda ganhou, judicialmente, o
direito de cremar seu corpo, em oposição à família de Terri, que queria
realizar sei sepultamento. E perguntamos novamente: de quem é o direito de
escolher acerca da eutanásia?
O BRAÇO FORTE
DA LEI
No Brasil ainda não existe previsão legal clara acerca da eutanásia. O
Biodireito, bem como outras áreas da ciência jurídica, tenta se posicionar
sobre o tema, mas passa pela resistência da sociedade, posto que ainda se trata
de um assunto-tabu para muitos.
Assim, o que resta aos juristas que estão vinculados com o Direito
chamado de tradicional, é o encaixe da eutanásia no Código Penal, forçando a
compreensão deste tema como sendo uma forma de homicídio. Não que esta leitura
não esteja correta. Ela só é curta. E demasiado curta, se o jurista não abre os
olhos para a Carta de 1.988 e para todas as modificações que a promulgação de
tal lei provocou.
O anteprojeto do que seria o nosso Novo Código Penal, entre muito pó e
teias de aranha de nossas Casas Legislativas, no parágrafo 3º, do artigo 121,
prevê uma pena especial de 3 a
6 anos de reclusão para quem participar da morte de alguém (mesclando as
figuras de eutanásia e de suicídio assistido).
Até aí, nada de novo sob o céu tupiniquim... Mas o que nos chama a
atenção é uma exclusão de ilicitude no parágrafo 4º do mesmo artigo do
anteprojeto que traz a figura da eutanásia
passiva.
E lemos tal anteprojeto e pensamos: que modernidade!, sem nos atentarmos
que a eutanásia passiva já pode ser praticada no estado de São Paulo, desde a
promulgação da Lei 10.241/99, conhecida por Lei Covas que, através de sua
artigo 2º, possibilitou a morte digna do Governador, paciente terminal
de câncer.
A TARANTELA
Na Itália a contenda se dá em razão de um paciente de distrofia muscular,
que há 9 anos se encontra vivendo em razão de alimentação por sonda e
respiração forçada por aparelhos. Este paciente, Piergiorgio Welby, pediu ao
parlamento que se manifeste através de lei acerca do direito de escolha pela
realização da eutanásia. Na verdade a coisa está meio “batata quente”, ou seja,
está naquela fase em que ninguém, de verdade, quer tomar partido, apesar das
manifestações de associações e da vida do Sr. Welby estar nos jornais
diariamente.
O SAMBA DO
CRIOULO DOIDO
O Brasil tem características que estrangeiro nenhum jamais poderá
compreender. E parece que esta febre chegou ao Conselho Federal de Medicina,
posto que em 28 de novembro de 2.006, publicou a Resolução 1.805/06 que indica
que “na fase terminal de enfermidades graves ou incuráveis é permitido ao
médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida
do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que
levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a
vontade do paciente ou de seu representante legal”. Ou seja: o CFM está em
plena consonância com o que diz a Carta de 1.988, também está em acordo com o
que diz a Lei Covas, e vira as costas para o que diz o artigo 121 do Código
Penal.
Enquanto uma nova lei não vem e dá o devido tratamento a um fato
jurídico, há quem tem coragem de fazê-lo.
O aconselhamento é dado aos médicos. Aconselhamento, sim, porque norma
publicada pelo CFM não é lei. Os médicos, sob a proteção do manto do
CFM podem MESMO usar dos meios necessários para convalidar a indicação da
resolução. Podem... mas será que farão? Porque, apesar do gesto de coragem do
Conselho Federal de Medicina, não podemos olvidar que o nosso judiciário não
possui 100% dos juízes familiarizados com os novos conceitos trazidos pela
Bioética e pelas novas tecnologias jurídicas, o que poderia convalidar para um
longo processo de homicídio em face do médico que realizou os procedimentos da
resolução 1.805/06, mas não escapou de um promotor que pode conservar uma
postura tradicional quanto ao famoso “matar alguém”.
Na Itália, o conselho que reúne os médicos não teve a mesma postura que o
brasileiro. Entretanto, em uma pesquisa realizada com um considerável número de
médicos, observou-se que 1 em cada 4 realiza procedimentos de eutanásia passiva[1].
E no Brasil, como será que andam as coisas, se não temos estes números para
guiar as decisões em nossas verdadeiras casas legislativas?
NÃO DEIXE O
SAMBA MORRER
“Antes de me despedir
Deixo ao sambista mais novo
O meu pedido final(...)”
E para encerrar, vemos que o que falta, por agora, no Brasil, é
reconhecer as verdadeiras posturas daqueles que formam o país e que elegem seus
governantes. É preciso perguntar, sem ter medo de conhecer a resposta e, a partir
daí, agir. Ficar escondendo a cabeça em buraco – raso ou fundo – é coisa para
avestruz, não para legisladores, que deveriam, de verdade, assumir suas funções
e executar o trabalho para o qual foram conduzidos ao poder. No meio desta
batalha sobre eutanásia e todos os seus desdobramentos, o que deveria ser
colocado sobre a mesa não é a morte em si, ou a conduta do paciente e das
pessoas e profissionais que o rodeiam, mas sim e principalmente, o direito de
escolher. Se vivemos em um país democrático, aliás um estado democrático de
direito, deveríamos, ao menos, ter reconhecido nosso direito a escolher. Quem é
contra a eutanásia que não a pratique. Quem é a favor, que possa realizá-la sem
ter que se sujeitar a descaminhos. O importante é a escolha. Que deve ser sua.
E escolha esclarecida, já que quem escolhe um caminho, fecha a porta para todas
as outras oportunidades. Sejamos realistas e assumamos que escolhemos em todos
os momentos da vida, por pequenas e grandes coisas. A questão não está na
envergadura da escolha em si, mas reside no fato de que sem exercitar o direito
de escolher, o homem perde uma das maiores características humanas que é,
justamente, decidir o seu destino.
Publicado em dezembro de 2.006
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