terça-feira, 26 de março de 2013

Samba Assim





“Quando eu morrer,
não quero choro, nem vela,
quero uma fita amarela,
gravada com o nome dela (...)”.

Este samba, tradicional no Brasil, denota que, à época de sua composição, não havia - pelo menos em primeiro plano - uma preocupação tão exacerbada com a forma como a vida ia acabar... desde que a fita amarela tivesse o nome dela.

Nos dias de hoje, cada vez mais afastados do romantismo do samba, cumpre a cada um de nós se posicionar sobre como queremos que a (nossa) vida termine.

A viagem filosófica que antes se fazia, a partir do fato inexorável da única certeza que temos na vida, passa a ter outros contornos quando o samba dá lugar a conceitos científicos que passaram a fazer parte da vida cotidiana do homem médio.

Se antes, a única certeza da vida era a morte, hoje esta certeza vem acompanhada de outros condimentos, às vezes não tão digeríveis. E acabamos por perceber que a preocupação do homem está muito mais ligada à forma de como a vida vai terminar, do que em buscar um verdadeiro elixir da imortalidade, posto que passamos a conviver com aquelas moderníssimas máquinas maravilhosas e os médicos incríveis que a manipulam e, a  cada dia, alguém recebe sua contagem regressiva.

Se, de um lado, a medicina se desenvolveu para descobrir e curar muitas doenças fatais de antigamente, também se desenvolveu para identificar patologias antes desconhecidas e ter que conviver com a impotência de não saber como curá-las.

Mas a medicina não se faz refém. Para poder fugir por completo de um possível e equivocado julgamento maniqueísta, ainda resta a esta ciência, o dever de cuidar dos seus, ou seja, posicionar os médicos e outros profissionais de saúde, que, por escolha, convivem com a luta de seus pacientes.

Então, a coisa toda toma outra dimensão. A descoberta da doença, sua terapia e a tentativa – às vezes infrutífera – de se alcançar a cura encontra outros caminhos para trilhar e, de repente, começa a tomar vulto o que vem se chamando de morte digna.

Uma análise mais rasa poderia dizer: morte digna, ainda que sua vida não tivesse sido tão brilhante?




QUERO MORRER DORMINDO...

Quantas e quantas vezes já não ouvimos esta expressão? É a forma coloquial do brasileiro dizer que pretende para si uma morte doce. E morte doce é, justamente, uma das formas de se traduzir do grego a expressão EUTANÁSIA.

Mas, na atualidade, a “morte doce” deixou de ser compreendida como algo que virá - mas que venha devagar, sem alarde, por favor – para ser compreendida como qualquer meio positivo ou negativo que abrevie a vida de alguém que sofra de uma enfermidade incurável.

Isso, então, nos reporta a uma das classificações que se fez acerca da eutanásia: ativa ou passiva. Se na eutanásia ativa, deve existir uma ação médica que, a pedido do paciente ou à sua revelia, vai finalizar um sofrimento que a doença lhe impõe; na eutanásia passiva temos, justamente, uma omissão médica, onde não existe a aplicação de uma terapia ou de um determinado medicamento que prolongará a vida de seu paciente.

Mas a morte doce ainda pode ter outros contornos: a mistanásia que está ligada à morte decorrente de sistemas e estruturas aplicadas à sociedade (fome, tortura, falta de acesso aos serviços de saúde, falta de acesso a medicamentos, modo de se adquirir doenças em decorrência de falta de educação, falta de saneamento básico, entre outras). A mistanásia, dentro de nossa compreensão, está sempre ligada a atos que o Poder Público deveria realizar e não realiza. Neste caso, a preocupação dos médicos, e da entidade que os representa (CFM), com a responsabilidade civil e criminal em decorrência da eutanásia (aqui compreendida como gênero), deixa de existir ou fica minorada, para indicar o Poder Público e as figuras que o compõe, como os verdadeiros responsáveis pelos destinos dos brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil (artigo 5º da Constituição Federal). E se o Poder Público, através de cada um de seus braços, não pode ou não consegue garantir ao menos saúde, que é um seu dever (artigo 6º cumulado com artigo 225 da Constituição Federal), que segurança, então, poderá dar aos seus?

Outro contorno é a DISTANÁSIA, tema já muito estudado e debatido pelo Padre Leo Pessini, brilhante representante brasileiro junto aos mais renomados órgãos que tratam de Bioética no mundo. O Padre Leo, como é carinhosamente conhecido, já muito publicou acerca deste tipo de eutanásia que, modicamente, podemos compreender como a morte ocorrida após a utilização de todos os meios e tecnologias para o prolongamento da vida, mesmo que esta vida não tenha qualquer qualidade, mesmo que não exista melhora efetiva para o paciente.

Em nossa opinião, e com a devida permissão que nos dá o direito de filosofar, entendemos que a incapacidade humana de se desprender daqueles que ama também pode chegar às beiras do egoísmo, fazendo com que os pacientes terminais nunca terminem sua missão, posto que presos a uma vida interminável, sustentada pelos mais modernos aparelhos e pelos mais poderosos remédios combatentes da dor.

Outros tantos tipos de eutanásia poderiam ser aqui aventados, mas vamos finalizar com a ORTOTANÁSIA, que vem a ser o que temos aprendido como morte digna. E morrer dignamente, ou morrer bem, significa morrer na própria cama, rodeado pelos familiares e pelos amigos. Há um abismo enorme entre curar e cuidar e, tanto os médicos e profissionais de saúde, quanto os próprios pacientes e seus familiares, passam a entender este hiato de uma forma mais contundente, posto que compreendem a impossibilidade da retomada de uma vida tida como normal, e vislumbram a possibilidade efetiva do próprio paciente escolher. O que se questiona, aqui, é que se esta escolha não for feita diretamente pelo paciente, ela deve ser validada? E a qual será a responsabilidade do profissional de saúde, posto que é ele quem agirá, ainda que positiva ou negativamente? A Bioética se preocupa com o direito de escolha, conforme presenciamos nas brilhantes batalhas ideológicas tratadas pelo Professor da USP, Dr. Marco Segre, médico e renomado bioeticista, mas este mesmo direito de escolha deve ser estendido aos familiares de um paciente que não consegue manifestar sua vontade? E mais, se o paciente terminal ou o paciente que se sustenta por aparelhos não possui recursos financeiros suficientes, qual será a efetiva responsabilidade do Poder Público neste emaranhado de fios, tubos e respiradores?


A CIDADE MARAVILHOSA E A TERRA DA GAROA

São conhecidos casos de eutanásia que já ocorreram no Brasil. No Rio de Janeiro o auxiliar de enfermagem E. I. Guimarães estaria envolvido em, pelo menos, 153 casos de eutanásia, tendo confessado apenas 4. O tal auxiliar já foi condenado a 76 anos de prisão por aplicar cloreto e potássio ou por realizar o desligamento  de aparelhos de pacientes que ele entendia como terminais, sustentando a tese de que pratica os atos por compaixão e piedade. Em São Paulo, um médico (C. A. C. Cotti) confessou também 4 eutanásias, quando aplicava substâncias químicas ou desligava os aparelhos que sustentavam a vida de pacientes terminais. Relata, inclusive, o médico, que um dos casos teria sido realizado após efetivo pedido do procedimento pela família do enfermo.

Ainda em terras paulistas, muito se falou sobre o caso que ficou conhecido como O Menino de Franca que, portador de uma doença degenerativa progressiva, aos 4 anos de idade, “causou” litígio entre seus pais, posto que a mãe queria que todos os meios disponíveis fossem utilizados para que a vida da criança fosse mantida, já que não existe cura para tal patologia e, o pai, contrariamente, buscava alternativas para a realização da ortotanásia. Chegou, inclusive o pai, conforme noticiou-se em todos os meios de comunicação, a pensar em intentar ação judicial para a autorização de realização da eutanásia. O caso perdeu notoriedade em razão do pai ter definitivamente desistido da idéia de provocar o judiciário com tamanha contenda. E o judiciário perdeu a preciosa oportunidade de traduzir, através dos nossos tribunais, a postura que o Brasil tem para com este tema. Deixou, desta forma, a tarefa para outros. E o Conselho Federal de medicina (CFM), como veremos mais adiante, não se furtou a este trabalho.


E NA TERRA DO TIO SAM...


O primeiro caso de eutanásia que se deu destaque nos Estados Unidos ocorreu em 1.976, com a paciente Karen Ann Quinlan, que foi seguido por Baby John, Claire Corroy, Nancy Jobes, entre outros. Mas, sem dúvida, o que mais recebeu atenção da mídia mundial foi o de Terri Schiavo, em 2.005. Diz-se que Terri passava por momentos difíceis com o final de fato de seu casamento e que estaria aplacada por problemas com bulimia, o que poderia ter causado uma parada cardíaca, em 1.990, e, em decorrência de falta de fluxo sanguíneo, teve uma lesão cerebral irreparável. Seu marido, Michael Schiavo, desde a constatação de seu estado, entrou com 3 pedidos de retirada de sua sonda de alimentação e teve seus 3 pedidos deferidos, sendo que os 2 primeiros foram revertidos pela família de Terri e a sonda foi recolocada. Entretanto, no terceiro pedido, a sonda foi retirada definitivamente e, em 31 de março de 2.005, Terri faleceu... de fome. O marido ainda ganhou, judicialmente, o direito de cremar seu corpo, em oposição à família de Terri, que queria realizar sei sepultamento. E perguntamos novamente: de quem é o direito de escolher acerca da eutanásia?


O BRAÇO FORTE DA LEI

No Brasil ainda não existe previsão legal clara acerca da eutanásia. O Biodireito, bem como outras áreas da ciência jurídica, tenta se posicionar sobre o tema, mas passa pela resistência da sociedade, posto que ainda se trata de um assunto-tabu para muitos.

Assim, o que resta aos juristas que estão vinculados com o Direito chamado de tradicional, é o encaixe da eutanásia no Código Penal, forçando a compreensão deste tema como sendo uma forma de homicídio. Não que esta leitura não esteja correta. Ela só é curta. E demasiado curta, se o jurista não abre os olhos para a Carta de 1.988 e para todas as modificações que a promulgação de tal lei provocou.

O anteprojeto do que seria o nosso Novo Código Penal, entre muito pó e teias de aranha de nossas Casas Legislativas, no parágrafo 3º, do artigo 121, prevê uma pena especial de 3 a 6 anos de reclusão para quem participar da morte de alguém (mesclando as figuras de eutanásia e de suicídio assistido).

Até aí, nada de novo sob o céu tupiniquim... Mas o que nos chama a atenção é uma exclusão de ilicitude no parágrafo 4º do mesmo artigo do anteprojeto que traz a figura da eutanásia passiva.

E lemos tal anteprojeto e pensamos: que modernidade!, sem nos atentarmos que a eutanásia passiva já pode ser praticada no estado de São Paulo, desde a promulgação da Lei 10.241/99, conhecida por Lei Covas que, através de sua artigo 2º, possibilitou a morte digna do Governador, paciente terminal de câncer.


A TARANTELA

Na Itália a contenda se dá em razão de um paciente de distrofia muscular, que há 9 anos se encontra vivendo em razão de alimentação por sonda e respiração forçada por aparelhos. Este paciente, Piergiorgio Welby, pediu ao parlamento que se manifeste através de lei acerca do direito de escolha pela realização da eutanásia. Na verdade a coisa está meio “batata quente”, ou seja, está naquela fase em que ninguém, de verdade, quer tomar partido, apesar das manifestações de associações e da vida do Sr. Welby estar nos jornais diariamente.





O SAMBA DO CRIOULO DOIDO


O Brasil tem características que estrangeiro nenhum jamais poderá compreender. E parece que esta febre chegou ao Conselho Federal de Medicina, posto que em 28 de novembro de 2.006, publicou a Resolução 1.805/06 que indica que “na fase terminal de enfermidades graves ou incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal”. Ou seja: o CFM está em plena consonância com o que diz a Carta de 1.988, também está em acordo com o que diz a Lei Covas, e vira as costas para o que diz o artigo 121 do Código Penal.

Enquanto uma nova lei não vem e dá o devido tratamento a um fato jurídico, há quem tem coragem de fazê-lo.

O aconselhamento é dado aos médicos. Aconselhamento, sim, porque norma publicada pelo CFM não  é lei. Os médicos, sob a proteção do manto do CFM podem MESMO usar dos meios necessários para convalidar a indicação da resolução. Podem... mas será que farão? Porque, apesar do gesto de coragem do Conselho Federal de Medicina, não podemos olvidar que o nosso judiciário não possui 100% dos juízes familiarizados com os novos conceitos trazidos pela Bioética e pelas novas tecnologias jurídicas, o que poderia convalidar para um longo processo de homicídio em face do médico que realizou os procedimentos da resolução 1.805/06, mas não escapou de um promotor que pode conservar uma postura tradicional quanto ao famoso “matar alguém”.

Na Itália, o conselho que reúne os médicos não teve a mesma postura que o brasileiro. Entretanto, em uma pesquisa realizada com um considerável número de médicos, observou-se que 1 em cada 4 realiza procedimentos de eutanásia passiva[1]. E no Brasil, como será que andam as coisas, se não temos estes números para guiar as decisões em nossas verdadeiras casas legislativas?


NÃO DEIXE O SAMBA MORRER

“Antes de me despedir
Deixo ao sambista mais novo
O meu pedido final(...)”

E para encerrar, vemos que o que falta, por agora, no Brasil, é reconhecer as verdadeiras posturas daqueles que formam o país e que elegem seus governantes. É preciso perguntar, sem ter medo de conhecer a resposta e, a partir daí, agir. Ficar escondendo a cabeça em buraco – raso ou fundo – é coisa para avestruz, não para legisladores, que deveriam, de verdade, assumir suas funções e executar o trabalho para o qual foram conduzidos ao poder. No meio desta batalha sobre eutanásia e todos os seus desdobramentos, o que deveria ser colocado sobre a mesa não é a morte em si, ou a conduta do paciente e das pessoas e profissionais que o rodeiam, mas sim e principalmente, o direito de escolher. Se vivemos em um país democrático, aliás um estado democrático de direito, deveríamos, ao menos, ter reconhecido nosso direito a escolher. Quem é contra a eutanásia que não a pratique. Quem é a favor, que possa realizá-la sem ter que se sujeitar a descaminhos. O importante é a escolha. Que deve ser sua. E escolha esclarecida, já que quem escolhe um caminho, fecha a porta para todas as outras oportunidades. Sejamos realistas e assumamos que escolhemos em todos os momentos da vida, por pequenas e grandes coisas. A questão não está na envergadura da escolha em si, mas reside no fato de que sem exercitar o direito de escolher, o homem perde uma das maiores características humanas que é, justamente, decidir o seu destino.



Publicado em dezembro de 2.006










[1] Corriere della Sera, dia 08 de dezembro de 2.006.

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